O conto “A legião
estrangeira”, é relativamente longo, narrado em primeira pessoa pela
protagonista, que exerce os papéis de mãe e dona de casa.
Trata-se de relato não-linear,
construído através de rememorações que interligam passado e presente
constituindo a teia que dá forma ao enredo.
A trama conta com poucas
personagens e é ambientada principalmente no interior da casa da protagonista.
A narrativa se divide em dois
momentos vivenciados pela narradora, distantes no tempo e no espaço, que se
unem através de um elemento comum: um pinto.
Os dois momentos
entrecruzam-se quando, em vésperas de Natal, conforme declara a narradora,
alguém “que queria ter o gosto de me dar coisa nascida” (LISPECTOR, 1999,
p.95), lhe presenteou com um pinto.
A graça do pinto, “pegou em
flagrante” (LISPECTOR, 1999, p.95) a família formada pelo pai, a mãe
(narradora) e quatro filhos. Desse modo, a família se reúne enlevada, curiosa e
embaraçada ao redor do pinto, “coisa que por ter nascido se espanta”
(LISPECTOR, 1999, p.97).
O conto se inicia com a
protagonista lembrando-se de Ofélia e seus pais, que conhecera, mas há muito
tempo não via mais.
“Estou tentando falar sobre
aquela família que sumiu há anos sem deixar traços em mim, e de quem me ficara
apenas uma imagem esverdeada pela distância. Meu inesperado consentimento em
saber foi hoje provocado pelo fato de ter aparecido em casa um pinto”
O que motiva a narradora-protagonista
a retomar o caso é o fato de ter aparecido em sua casa outro pinto de forma inesperada
e enigmática, causando surpresa, admiração, integração e sensibilidade ao seio
familiar.
“Mas o Natal é amanhã, disse
acanhado o menino mais velho. Sorrimos desamparados curiosos”.
Esse fato desencadeia um clima
de comoção familiar em que todos os membros voltam-se em torno de um elemento
novo, capaz de provocar dúvidas, indagações, reflexões, implicando na reestruturação
emocional das pessoas, que contemplam a fragilidade do animal.
A cena se desenvolve, de forma
aflitiva, por meio da consideração do desamparo na vida:
O menino menor não suportou
mais:
“- Você quer ser a mãe dele?
Eu disse que sim em
sobressalto. Eu era a enviada junto àquela coisa que não compreendia a minha
única linguagem: eu estava amando sem ser amada. ” (LISPECTOR, 1999, p. 98).
É importante observar que
crianças e adultos vivenciam de modo diferenciado o encontro com o pinto, pois
em meio à aflição deste, os adultos ficam resignadamente constrangidos,
acreditando que “as coisas são assim mesmo”, ao passo que as crianças esperam
destes uma atitude salvadora, como esclarece o excerto abaixo:
“Nós, os adultos, já teríamos
encerrado o sentimento. Mas nos meninos havia uma indignação silenciosa, e a
acusação deles é que nada fazíamos pelo pinto ou pela humanidade. A nós, pai e
mãe, o piar cada vez mais ininterrupto já nos levara a uma resignação
constrangida: as coisas são assim mesmo. [...] Se nunca havíamos conversado
sobre as coisas, muito mais tivemos naquele instante que esconder deles o
sorriso que terminou nos vindo com o piar desesperado daquele bico, um sorriso
como se a nós coubesse abençoar o fato de as coisas serem assim mesmo, e
tivéssemos acabado de abençoá-las” (LISPECTOR, 1999, p.96-97).
Assim, logo no início do
conto, nos deparamos com o sentimento de indignação dos filhos da narradora,
que de tão agudo desconcerta os adultos presentes na cena e, posteriormente, no
segundo momento, nos deparamos com a menina Ofélia, sempre autoconfiante,
altiva, que desconhece as belezas do mundo infantil, enquanto tem amplo domínio
sobre sentimentos e/ou comportamentos comumente atribuídos aos adultos.
Ofélia era uma criança de “oito
anos altivos e bem vividos” (LISPECTOR, 1999, p.100) e que pertencia a uma
família trigueira.
A narradora percebia-os de
forma estrangeira, distante no tempo e no espaço, embora o sobrenome da família
indique o contrário.
A caracterização do núcleo
familiar inclui também o orgulho (ou o martírio oculto) como traço decisivo:
“O pai agressivo, a mãe se
guardando. Família soberba” (LISPECTOR, 1999, p. 99).
A descrição de Ofélia é feita
de forma sintética, conferindo-lhe vida singular:
“Era uma menina belíssima, com
longos cachos duros, Ofélia, com olheiras iguais às da mãe, as mesmas gengivas
um pouco roxas, a mesma boca fina de quem se cortou. [...] Tocava a campainha,
eu abria a portinhola, não via nada, ouvia uma voz decidida:
- Sou eu, Ofélia Maria dos
Santos Aguiar” (LISPECTOR,
1999, p. 100), o que lhe
confere um tom de autonomia, altivez, segurança de si.
A relação entre Ofélia e a
narradora não era permeada pela tranquilidade, também não era marcada por uma
hierarquia que faça da adulta, de algum modo superior à menina.
Ofélia, ao contrário, é quem
se mantém impositiva, arrogante, ao passo que a dona de casa parece sempre
hesitante, duvidosa, insegura. Ofélia não é apresentada como uma criança
frágil, indefesa, nem a mulher como pessoa segura de si, firme ou mesmo
decidida. Estas vivenciam um conflito no qual se entrevê uma espécie de
inversão de papéis, isto é, a criança com características de adulto e a adulta,
ao contrário, é frágil, por essa razão este embate culmina num nascimento ou
autoconhecimento para ambas, porque conseguem através da experiência da
contemplação encontrarem-se a si mesmas.
O fato de que a narradora não
via nada, sugere um descompasso entre o tamanho da garota e seu jeito
impositivo.
Os “cachos duros” também
constituem uma imagem paradoxal de rigidez e flexibilidade. O descompasso é
acentuado pela forma como Ofélia se relaciona com a mulher. Assim, a menina é
controladora e sistemática.
A narradora reconhece ser
“atraente demais para aquela criança” porque tinha defeitos bastantes para seus
conselhos (LISPECTOR, 1999, p. 103).
Ela menciona oferecer um
“rosto sem cobertura” para a menina. A imagem associa-se à empada de legume sem
tampa, antes mencionada por Ofélia (LISPECTOR, 1999, p. 101).
Desse modo, parece que nada
desestabiliza a percepção de mundo de Ofélia.
A argúcia de um olhar
penetrante, persistente permitiu o despertar para a outra face de si ofuscada
pela face sombria que dominava a menina Ofélia. Através do olhar a personagem
percebe a complexidade do amor ainda infante:
“Por essa ocasião, sendo perto
da páscoa, a feira estava cheia de pintos, e eu trouxe um para os meninos.
[...] Mais tarde Ofélia aparecia para a visita. [...] Foi quando me pareceu que
de repente tudo parara. Sentindo a falta do suplício, olhei-a enevoada. Ofélia
Maria estava de cabeça a prumo, com os cachos inteiramente imobilizados.
— Que é isso, disse.
— Isso o quê?
— Isso! Disse inflexível.
— Isso?
Ficaríamos indefinidamente
numa roda de "isso?" e "isso!", não fosse a força
excepcional daquela criança, que, sem uma palavra, apenas com a extrema
autoridade do olhar, me obrigasse a ouvir o que ela própria ouvia.
No silêncio da atenção a que
ela me forçara, ouvi finalmente o fraco piar do pinto na cozinha.
— É o pinto.
— Pinto? Disse
desconfiadíssima.
— Comprei um pinto, respondi
resignada” (LISPECTOR, 1999, p. 103-104).
Desse trecho, inicialmente, é
importante observar a marcação temporal feita pelo narrador: “sendo perto da
páscoa, a feira estava cheia de pintos, e eu trouxe um para os meninos”
(LISPECTOR, 1999, p. 103). A páscoa é entendida no contexto bíblico como rito
de passagem da morte para a vida, que apesar de marcado pelo sofrimento culmina
em salvação, libertação.
Trata-se de uma data carregada
de simbologias e celebrada em muitos países, há muito tempo.
No mercado de Beirute, capital
libanesa, por exemplo, a venda de pintinhos coloridos constituía uma prática
comum, pois, as pessoas mantinham a tradição de oferecê-los como presente na
preparação para a páscoa.
Desse modo, a representação
alegórica do pinto presente desde o início do conto funciona como mediadora do
processo de transformação a ser vivenciado pela menina. O excerto citado nos
mostra que a menina, ao ouvir “o fraco piar do pinto”, haja vista que se trata
de um animal recém-nascido, principia um confronto pelo olhar que eleva a cena
enunciativa a um paradigma que dispensa o diálogo verbal, ao qual a narradora
denomina de silêncio da atenção, fazendo-se ouvir mesmo sem usar as palavras,
em que todo o processo de interação ocorre pela mediação do olhar.
Nesse sentido, Ofélia
experimenta tamanha sensação de estranhamento ao ouvir o piar do pinto que
passa a concentrar o máximo de sua atenção no animal, o que se observa na
paralização que envolve a cena, possivelmente usado para manifestar o interesse
em saber a razão do ruído, além do pronome demonstrativo ‘isso’ que atribui
caráter imagético ao discurso o que corrobora a ideia de dedicação ao objeto do
seu olhar.
O ato de olhar permite que as
personagens penetrem no íntimo do outro, fazendo-as entrever através do outro
uma face de si dantes desconhecida. Isso se torna possível, porque a ação
contemplativa em Clarice indica, por um lado, o movimento de deslocamento para
fora do âmbito do sujeito - olhar a coisa - e por outro, o de imediato mergulho
para dentro. Assim, ao fitar o outro, as personagens se deslocam de si para
explorá-lo e imediatamente retornam ao seu interior, detendo-se ao ser
contemplado a ponto de confundir-se com este.
Dessa perspectiva, as
personagens do conto em estudo, ao travarem um embate pelo olhar, se
identificam de tal modo que um toca o outro indistintamente, não havendo, pois,
a necessidade do diálogo verbal para se compreenderem.
A atividade visual que a partir
de então se processa, possibilita o desvelamento da face sombria da menina
dantes encoberta pela sua condição de indivíduo infante, deixando-a desnuda em
relação à narradora, que pode entrever em seu semblante uma gama de sentimentos
como a inveja, a maldade, a cobiça, o desejo de posse, dentre outros.
“Um pinto faiscara um segundo
em seus olhos e neles submergira para nunca ter existido. E a sombra se fizera.
Uma sombra profunda cobrindo a terra. Do instante em que involuntariamente sua
boca estremecendo quase pensara "eu também quero", desse instante a
escuridão se adensara no fundo dos olhos num desejo retrátil que, se tocassem,
mais se fecharia como folha de dormideira. E que recuava diante do impossível,
o impossível que se aproximara e, em tentação, fora quase dela: o escuro dos
olhos vacilou como um ouro. [...] Depois que o tremor da cobiça passou, o
escuro dos olhos sofreu todo: não era somente a um rosto sem cobertura que eu a
expunha, agora eu a expusera ao melhor do mundo: a um pinto” (LISPECTOR, 1999,
p.104-105).
Ou seja, o pinto não apenas
desestrutura Ofélia, ele vai além, ao desencadear um processo de morte e
renascimento na menina. Nasce uma nova Ofélia que lida com a falta.
O ato contemplativo agora
cresce em complexidade, desdobrando-se a partir do novo que descortina quando
da visão do pinto, elemento desencadeador da transformação pela qual Ofélia
precisou passar para encontrar-se, isto é, autoconhecer-se. A partir do momento
em que o pinto reluz diante dos olhos de Ofélia, um sentimento obscuro lhe
invade, manifesto tanto na escuridão que recobre o horizonte vislumbrado pela
menina, anunciada pela expressão “E a sombra se fizera” como na desfiguração
que envolve seu corpo, pois sua boca estremece e os seus olhos, notadamente a
sua parte escura, responsável por refletir a luz, vacilam, padecem.
Nesse sentido, “a sombra”
representa aquilo que o indivíduo rejeita em si mesmo, aquilo que tenta
esquecer ou insiste em mascarar, reprimir de alguma forma, como uma “faceta
desagradável”.
Nesses termos, a ideia de
penumbra, escuridão, reiterada ao longo do excerto citado através das
expressões: “o escuro dos olhos vacilou como ouro” e “o escuro dos olhos sofreu
todo” configuram a ideia de que o contato visual com o pinto fez emergir a face
indesejada, recalcada de Ofélia. Devido a educação que recebeu, a menina se
esforçava em manter uma aparência de sujeito polido, delicado; por essa razão,
não consegue evitar o desconforto, a vergonha resultante do sentimento de
inveja, do desejo incontrolável que ela sente de ser a dona daquele pinto, de
maneira que a cena que se segue à sua experiência de visibilidade enfatiza a
agonia que a atravessa.
Não foi sem sofrimento que se
deu o processo de autodescoberta da protagonista que a expusera à epifania nesse
momento. Trata-se de um processo de metamorfose, que se inicia com uma alusão à
morte, não uma morte suave, mas angustiante, martirizante como comprova o fragmento
citado a seguir:
“Alguma coisa acontecia que eu
não conseguia entender a olho nu. E de novo o desejo voltou. Dessa vez os olhos
se angustiaram como se nada pudessem fazer com o resto do corpo que se
desprendia independente. E mais se alargavam, espantados com o esforço físico
da decomposição que dentro dela se fazia. A boca delicada ficou um pouco
infantil, de um roxo pisado. Olhou para o teto — as olheiras davam-lhe um ar de
martírio supremo. Sem me mexer, eu a olhava. Eu sabia da grande incidência de
mortalidade infantil” (LISPECTOR, 1999, p.105).
O fato de não ser decifrável
sem o auxílio de lentes ou qualquer aparelho produzido cientificamente diz
respeito a um modo de olhar com caráter artificial, entretanto, a visão
produzida em laboratório parece ser insuficiente para explicar a cena que se
passa mediante a narradora, conforme a expressão ‘olhou para o teto’ denuncia.
O fato de direcionar a vista
para o alto assume uma dimensão filosófica, pois como ensina Platão, constitui
indício do desejo de busca pela compreensão do mistério, pelo conhecimento
superior, o que sofistica esse olhar fazendo-o evoluir da perspectiva física
para a metafísica. É notável, ainda, o fato de que a morte se instaura em todo
o corpo, exceto nos olhos da personagem, que são personificados, isto é,
adquirem a peculiaridade humana de testemunhar a decomposição, a transfiguração
pela qual passa a garota. É válido ressaltar que a morte figurada na cena não
se caracteriza como morte biológica, que tem seu fim na deterioração da
matéria; pelo contrário, trata-se de uma morte simbólica e todo o processo
culmina em renovação, revelação, acepção justificável na analogia feita à saída
do caracol de sua concha, que representa a visão de um novo horizonte, a
possibilidade de alçar novos voos, de transcender, o que alude mais uma vez à
ideia de rito de passagem construída na referência à páscoa e concretizada na
presença do pinto, que simboliza vida nova.
“Diante de meus olhos
fascinados, ali diante de mim, como um ectoplasma, ela estava se transformando
em criança. Não sem dor. [...] A lenta cólica de um caracol. (Me ajuda, disse
seu corpo na bipartição penosa. Estou ajudando, respondeu minha imobilidade.)
[...] Ela estava engrossando toda, a deformar-se com lentidão. Por momentos os
olhos tornavam-se puros cílios, numa avidez de ovo. E a boca de uma fome
trêmula” (LISPECTOR, 1999, p.105-106).
O rito de passagem vivenciado
por Ofélia, a exemplo do retratado pela páscoa cristã, dá-se mediante amplo e
compassado sofrimento físico, pela solidão e pela decisão de seguir em frente.
Entretanto, se revela num evento relevante para a formação humana da
protagonista, que mantinha adormecida dentro de si uma série de sentimentos que
lhe impediam de viver a sua infância.
Ainda, que se trata de um
processo de descoberta individual, pois apesar de tê-la permitido adentrar a um
ritual de iniciação, de ter lhe apresentado à infância nunca dantes vivenciada,
a datilografa se reserva a conduzi-la, a incentivá-la através da atenção do seu
olhar, mesmo mediante toda a comoção que a toma, não interferindo de forma
direta na concretização do processo.
A vizinha adulta de Ofélia sabia
que não podia lhe estender a mão, no entanto, através da troca de olhares
solidarizou-se, integrou-se a ela na luta para reintegrá-la à infância. Bem
sabia a datilógrafa que esse seria um passo que Ofélia deveria dar sozinha, que
ninguém poderia dar por ela, para que como resultado obtivesse o sucesso
desejado. Também ela em criança precisara trilhar aquele caminho pedregoso e
regozija-se na satisfação de tê-la conduzido, pois sabe que “também se morre em
criança sem ninguém perceber” (LISPECTOR, 1999, p.106). Porém, Ofélia tivera a
oportunidade de encontrar-se, de se tornar criança.
“Já há alguns minutos eu me
achava diante de uma criança. Fizera-se a metamorfose” (LISPECTOR, 1999,
p.106), confirma satisfeita a narradora.
Além da metáfora do caracol, também
a água aparece no conto como elemento de autodescoberta e de purificação, capaz
de revelar à personagem Ofélia a sua face humana, o seu nascimento para a nova
vida, o seu batismo.
“Até então eu nunca vira a
coragem. A coragem de ser o outro que se é, a de nascer do próprio parto, e de
largar no chão o corpo antigo. E sem lhe terem respondido se valia a pena.
“Eu”, tentava dizer seu corpo molhado pelas águas. Suas núpcias consigo mesma”
(LISPECTOR, 1999, p.106).
Ao ouvir o piar do pinto a
menina desperta para algo que desconhecia, mas que se encontrava dentro dela.
O ar de altivez e segurança,
comum a Ofélia, cessara abruptamente fragilizando-a, imobilizando-a, tornando-a
vulnerável. O amor intenso, desmedido que descobrira ao contemplar o pinto, representa
o princípio uma nova vida, isto é, liberta a criança que havia sido transformada
em “miniatura de adulto” pela educação rígida que recebera no seio familiar.
A narradora não deixa de
satirizar o episódio, ao se apropriar parodicamente da linguagem engessada de
Ofélia:
“[...] parecia deixá-lo
autônomo só para sentir saudade; mas ele se encolhia, pressurosa ela o
protegia, com pena de ele estar sob seu domínio, “coitado dele, ele é meu”;
[...] – era o amor, sim, o tortuoso amor. [...] Ele é muito pequeno, portanto
precisa é de muito trato, a gente não pode fazer carinho porque tem os perigos
mesmo“ (LISPECTOR, 1999, p. 108).
Entretanto, Ofélia, habituada
que fora a sobreviver, não conseguiu adaptar-se a essa nova experiência
preferindo ceder ao amor criminoso, tortuoso que a fez matar o pinto.
“No chão estava o pinto morto.
Ofélia!
Chamei num impulso pela menina
fugida. A uma distância infinita eu via o chão.
Ofélia, tentei eu inutilmente
atingir à distância o coração da menina calada.
Oh, não se assuste muito! Às
vezes a gente mata por amor, mas juro que um dia a gente esquece, juro!
A gente não ama bem, ouça,
repeti como se pudesse alcançá-la antes que, desistindo de servir ao
verdadeiro, ela fosse altivamente servir ao nada“ (LISPECTOR, 1999, p.110).
A menina foge com “uma cara
extremante quieta” (LISPECTOR, 1999, p. 110).
O fragmento citado ratifica
que o ato extremo de matar a frágil avezinha é consequente da falta de
habilidade de amar, de serem bons demonstrada pelas personagens ao longo da
narrativa. A narradora então incube-se de tentar evitar que a menina se perca, mais
uma vez, pelo caminho da vida. Entretanto, ela não voltou à sua casa, pelo
contrário, retornou para o deserto onde tornou-se uma princesa hindu.
O conto encerra-se com a
narradora em sua cozinha batendo um bolo e sob a mesa “estremece o pinto de
hoje” (LISPECTOR, 1999, p. 110), local de onde partiram suas rememorações,
aludindo ao que pode ser indício de um enredo cíclico, ou seja, mostrando que
se trata de uma história que se repete periodicamente.
Assim, na passagem final, a
mulher desenvolve uma reflexão sobre como o pinto retorna. O pinto que Ofélia
havia matado era o da páscoa, ironicamente um período simbólico de martírio e
de renascimento. O pinto do momento da enunciação é o do Natal.
Nesse sentido, os “autos do
processo” que a narradora conduz são uma tentativa de defesa não só de Ofélia,
mas também dela própria. Mesmo porque a narradora-protagonista afirma que o
pinto retorna, ao passo que Ofélia foi perdida: “Ofélia é que não voltou:
cresceu. Foi ser a princesa hindu por quem no deserto sua tribo esperava”
(LISPECTOR, 1999, p. 110).
A referência imprevista ao
hinduísmo pode conotar tanto a caracterização trigueira de Ofélia quanto as
ideias de reencarnação e carma. Ou seja, no conto, Ofélia morre e nasce outra
vez. Ao mesmo tempo, no campo semântico de carma, a narração nos leva a indagar
se ela teria livre arbítrio em relação ao crime que cometeu. É possível ser
bom? Pois a narradora-protagonista sugere, ao contrário, que a bondade seja uma
aprendizagem.
A referência trágica do nome
de Ofélia, por sua vez, implica a desmesura do sobre-humano, embora o restante
de seu nome possua uma referência católica: “Ofélia Maria dos Santos Aguiar”.
Esse complemento pode ser
lido, por um lado, como uma forma de a menina se colocar numa posição
inatingível de pureza (Maria), mas também de controle (a guiar).
Por outro lado, pode conotar
que a personagem infantil precisava de proteção (dos Santos). Ainda, se nos ativermos à chave de leitura do
crime de Ofélia, o nome pode ser lido ironicamente, significando o seu
contrário.
Em “A legião estrangeira”, a
figuração do animal é um agente de extrema relevância que opera no
descentramento da constituição das personagens humanas. O pinto atua, portanto,
como elemento perturbador de qualquer lógica ou ordem fixa que as pessoas
queiram em vão sustentar. A protagonista narradora define o fato do pinto como
um sentimento que vai se modificando como a água que vai se transformando a
cada ocasião que se lhe apresenta:
“Mas sentimentos são de um
instante. Em breve como a mesma água já é outra quando o sol a deixa mais leve,
e já é outra quando se enerva e tenta morder uma pedra, é outra ainda no pé que
mergulha – em breve já não tínhamos no rosto apenas aura e iluminação. Em torno
do pinto estávamos bons e ansiosos”.
A protagonista narradora fala da bondade e o efeito que ela provoca em cada pessoa de sua família e nela. No marido rapidez e severidade; nos meninos, um ardor, e nela, intimidação. Como a água os sentimentos iam se transformando.
A protagonista narradora fala da bondade e o efeito que ela provoca em cada pessoa de sua família e nela. No marido rapidez e severidade; nos meninos, um ardor, e nela, intimidação. Como a água os sentimentos iam se transformando.
“Daí a pouco olhamos enredados
pela falta de habilidades de sermos bons, e o sentimento já era outro, da falta
de bondade para tínhamos no rosto a responsabilidade de uma aspiração, o
coração pesado de um amor que já não era mais livre. Passado o momento do
pinto, os adultos já o tinham esquecido, mas os meninos não, ficara uma
indignação. Não só indignação, mas também acusação de que nada fazíamos pelo pinto
e pela humanidade”. Constrangidos, pai e mãe ainda não haviam dito para os
filhos que as coisas são assim mesmo.
“E o pinto continuava ali sobre a mesa, piando cheio de medo. Não tinha como acalmá-lo porque ele não conhecia sentimentos”.
Nesse momento em que o pinto estava ali sobre a mesa
com medo, a protagonista desejou que o pinto fosse igual os humanos e sentisse
como os humanos o sentimento do amor e soubesse que ali, ele, como obra de
Deus, estava sendo amado.“E o pinto continuava ali sobre a mesa, piando cheio de medo. Não tinha como acalmá-lo porque ele não conhecia sentimentos”.