quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

IMPRESSIONISMO: EDGAR DEGAS (1834-1917)



“QUATRO BAILARINAS EM CENA” (1885-1890) 
Edgar Degas – coleção MASP

   “Um dos mais importantes pintores impressionistas, Degas (1834-1917) é tema de exposição no MASP, em São Paulo, nesse ano. Reconhecido como o grande mestre das figuras em movimento, Degas é hábil desenhista e um grande inovador na arte do retrato, distinguindo-se pela particular interpretação da luz. Suas técnicas eram originais, enfocando os temas a partir de ângulos incomuns, muitas vezes de um ponto visto de cima. Com um olhar fotográfico, quase sempre posicionava-se de forma descentralizada.” (FGV-2006)

   “(...) Mas é bom avisar que, quanto ao tema das bailarinas, que o senso comum entende indissociável do artista, não foi bem assim. Na realidade, Degas não era um apaixonado por bailarinas, mas pelo movimento, fosse o observado em um espetáculo de balé, uma corrida de cavalos ou uma empregada doméstica passando roupas. O artista fazia até sutilíssimas anotações da mobilidade das expressões faciais, o que tornou excelente retratista.
   Se há hoje uma predominância de bailarinas em sua obra, isso se deve a fatores, digamos, práticos. Degas atendeu a uma demanda do mercado de arte, exatamente quando a fortuna da família (era filho de banqueiro) acabou. Não se imagine, porém, que houve concessões estéticas ditadas pela pressa do lucro. Degas era perfeccionista e, já então, artista consagrado e zeloso de sua reputação. Pintando ou modelando bailarinas, o artista era plenamente consciente de que impulsionava a arte de seu tempo e liderava um movimento. 
   Que razões, porém fazem dessas graciosas personagens algo tão admirado? Uma delas é que há aí o resultado de um olhar moderno, descolado da tradição. Isso fica bem evidente em suas pinturas. Observe o enquadramento, o modo como a cena e os personagens ocupam os espaços da tela. Note que, assim como nas fotografias instantâneas, há figuras parcialmente capturadas no retângulo da imagem.
   O artista parece frisar que a realidade é muito maior, que não cabe inteira na representação possível dela. Observe os ângulos escolhidos para fixar esses instantes. Podem estar em plano aéreo, vendo a cena de cima para baixo, como a platéia dos camarotes de um teatro. Ou podem mergulhar no poço da orquestra para, de baixo para cima, focar o palco como detalhe e os músicos como assunto principal.
   Esses enquadramentos não seriam possíveis se, na época em que foram realizados, a fotografia (inventada em 1839) já não estivesse estabelecendo um novo modo de comentar o mundo. Quanto ao fascínio pelo movimento (Degas foi contemporâneo de Étienne Maray, inventor da cronofotografia, precursora do cinema), cabe lembrar que o artista vivia em uma das maiores metrópoles de um mundo que, graças às máquinas da Revolução Industrial, ganhava um ritmo de vida acelerado. A velocidade passava a dominar a vida urbana e Degas foi dos primeiros a fazer dela um tema artístico.
   De formação clássica, Degas iria adentrar o moderno. Ainda não louvava diretamente as máquinas como o faria, uma geração depois, o Futurismo italiano. O pulso dos novos tempos foi sentido ainda na pele e nos músculos de seus modelos. Era a busca do equilíbrio e do ritmo que o fascinava. Daí as aulas de balé e, na mesma medida, os cavalos de corrida. Um dos seus seguidores diretos, o pintor Toulouse-Lautrec (presente na mostra com quatro obras, todas do acervo Masp) era mulherengo. Degas era até algo misógino. Mas não lhe escapava a fatigante rotina de adestramento a que eram submetidas as bailarinas, assim como os jóqueis e seus cavalos. Começava a emergir aí, nos estúdios sombrios e na poeira das pistas de corrida, um pouco do drama do indivíduo urbano confrontando com a dura rotina do cotidiano." (BRAVO! MAIO 2006)

“Até hoje, Degas tem sabido captar o espírito da vida moderna melhor do que ninguém.”
Edmond de Goncout

    Conhecido como “aquele terrível Monsieur Degas”, o cáustico pintor se opunha a qualquer reforma social e não gostava de crianças, flores e cachorros. “Há o amor e há o trabalho”, ele dizia, “mas nós só temos um coração”. Quase cego e um amargo recluso, dizia: “Quando eu morrer vão ver como trabalhei duro.”
  
   DEGAS, nome real Edgar-Germain-Hilaire de Gás, nasceu em 19 de julho de 1838. A família vivia no padrão burguês de conforto e Degas nunca passou por necessidade financeira, exceto por um breve período após a morte de seu pai.  Bonito, rico, elegante e culto, afetava quase arrogância na compostura um tanto empertigada. De temperamento anti-social, matriculou-se na faculdade de direito da Universidade de Paris, mas passava a maior parte de suas tardes no departamento de reproduções gráficas da Biblioteca Nacional, onde pesquisava e copiava obras dos grandes mestres da pintura. Além de estudar as gravuras, também visitava o Louvre para observar pinturas originais dos grandes artistas.
   Logo sentiu necessidade de ateliê próprio. Seu primeiro professor foi Barrias, substituído pouco tempo depois por Louis Lamothe, discípulo medíocre de Ingres, mas que pelo menos passava a Degas o que aprendia com seu próprio mestre.
   As lições foram fundamentais, pois Degas nunca esqueceu a obra de Ingres, que tanto o influenciou, nem as palavras que dele ouviu num de seus raros encontros: “Nunca desenhe a partir da natureza, meu jovem. Desenhe sempre de memória e segundo o trabalho dos grandes mestres!”
    Talvez seja esse o motivo que, em 1855 Degas após ser aceito na Escola das Belas-Artes, preferiu viajar à Itália e conhecer a paisagem, a atmosfera e as cores que haviam inspirado Giotto, Botticelli, Bronzino, Leonardo, Rafael e Paolo Uccello.
   Os esboços e comentários que registrou nos cadernos de viagem até hoje documentam seu desenvolvimento artístico.
   Entre muitas viagens que fez à Itália, a mais importante foi a de 1858. Foi durante esse período que ele escreveu sobre Luca Signorelli e seu “amor pelo movimento”, sobre o surpreendente senso de drama e expressão de Giotto e sobre a emoção que sentiu quando compreendeu, pelas próprias obras dos grandes mestres, que toda “essa gente possuía muita consciência da vida e não negava”.
   Em Florença, hospedado na casa de uma tia, talvez já tivesse pensado em pintar um retrato da família, pois antes fizera esboços de uma das primas. Anos depois, em seu ateliê em Paris, ele usaria estudos e desenhos feitos naquela viagem para produzir “A Família Bellelli”, o primeiro de um novo gênero de retrato.
   O quadro talvez tenha sido um dos mais modernos da época, em parte pelo nítido contraste entre o rigor do desenho clássico e certos detalhes intencionalmente imprecisos (o tapete e as flores do papel de parede) e, em parte, pelas expressões das figuras.
   As pessoas parecem pegas de surpresa, em poses naturais e a meio pensamento; as posturas não parecem estudadas. Uma das meninas olha o pintor, enquanto o barão está de costas para o observador. É um quadro cheio de energia, mas que enfatiza, na observação cuidadosa das pessoas retratadas, mais a natureza íntima da composição do que seu aspecto imediato.
   Como os velhos mestres, Degas sentia impaciente necessidade de transpor para a tela a experiência pessoal da vida de sua época. Por isso, entre 1860 e 1865, quando estava trabalhando em “A Família Bellelli”, também ia desenvolvendo outros motivos que refletiam seu poderoso desejo de enriquecer a própria vivência. Desenvolveu grandes quadros históricos que eram sua homenagem aos pintores clássicos. Entre eles, “Jovens Espartanos Praticando Exercícos”, “Semíramis Fundando Babilônia”, “A Filha de Jeftá”, “Alexandre e Bucéfalo”, “Cenas de Guerra na Idade Média” ou “Os Infortúnios da Aldeia de Orleans”. O fato é que, embora inferiores às que vieram depois, essas obras impressionam pelo apuro e pela leveza de seus matizes.
   Em 1872, Degas pintou um quadro com fôlego novo: “Nas Corridas”. Degas captou como motivo o momento em que os cavalos estão para largar, nas imagens, a cor se converte em movimento. Os jóqueis no primeiro plano mostram relação visual com os espectadores no plano intermediário, e estes, por sua vez, vão relacionar-se com os cavaleiros de fundo.
   Outro quadro que surpreende se comparado a outros do período, é “Mulher com Crisântemos”, de 1865. Com sua figura tão natural e imediata parece quase fotografia. A mulher, deslocada à direita na composição, está absorta e distante, alheia a quem a observa; o que de fato domina a cena é o vaso de flores.
   Nesse período conheceu Manet e, por intermédio deste, Bazille, Cézanne, Pissarro, Renoir, Sisley e Zola.
   Como Manet, Degas também sentia desejo e necessidade de “pertencer a seu tempo e pintar o que via”. A partir dessa época, empolgado pela ressaca da maré cultural e artística, e influenciado pelas técnicas de Manet, Degas deu à cor função mais decisiva em seu trabalho, passou a usá-la para destacar rostos, pequenos detalhes de um quarto, movimentos de toda uma cena.
   Nem por isso desprezava a precisão dos artistas holandeses ou as regras aprendidas com outros grandes mestres do passado. Inspirava-se também em gravuras japonesas como as do grande inovador Hokusai.
   Em muitos sentidos, Degas estava adiante de época. Inclusive da fotografia, pois vinte anos antes da projeção das primeiras fotografias de um cavalo a galope produzidas por Eadwearch Muybridge, Degas já fizera quadros “de instantâneo”.
   Degas após conhecer a orquestra da Ópera, passou a observar os músicos, o seu trabalho e começou a desenhar o que via.
   Num apontamento para si mesmo, escreveu: “Série sobre os instrumentos e instrumentistas, suas formas, os braços torcidos, os ombros e o pescoço do violinista, por exemplo, as bochechas infladas e os lábios do fagotista, o oboísta...” Tomava nota e pintava.
   “A Orquestra da Ópera” é apenas um título em longa série de quadros que tinham por tema o mundo dos espetáculos, o teatro visto do lado de lá da ribalta, do lado dos que o faziam e o viviam. Depois de reunir muitos desenhos e croquis, ele os arquivava na mente e reconstruía as cenas com realismo; dava às imagens novo senso de espaço e luz. Mas foi só em 1872 que começaram a aparecer grupos inteiros de bailarinas, na barra ou ao espelho, como em “Sala de Ensaio de Balé no Teatro da Ópera.”
   Outro retrato representativo do cotidiano foi o que pintou em 1869, “A Passadeira”.
   “À Beira-Mar”, pastel da mesma época, destoa da temática predominante em Degas, por contrapor indivíduos e natureza. Quanto a isso, ele próprio explicou: “É corajoso representar a natureza em seus grandes planos e linhas e é covarde fazê-lo em facetas e detalhes”. Era uma crítica a outros pintores, um julgamento franco como o que fez a respeito da pintura impressionista ao ar livre: “Um quadro é antes de tudo um produto da imaginação do artista, não deve nunca ser uma cópia. O ar que se vê nos quadros dos mestres não pode ser respirado.”
   Em contraste com Manet, Degas não improvisava. Era impossível para ele se deixar levar apenas por inspiração e impulsos do momento.
   Em 1872, dois anos depois da guerra franco-prussiana, Degas viajou para Nova Orleans. Em Louisiana, começou a retratar diferentes membros da família. Apesar de reunir as figuras do tio e do irmão, “A Corretora de Algodão em Nova Orleans” não tem a mesma atmosfera familiar do retrato da família Bellelli. A cena é a de um escritório na bolsa de algodão e reproduz com realismo quase exasperante a atmosfera de um ambiente de trabalho burguês do século XIX.
   Quando voltou a Paris, Degas fechou-se no ateliê e retomou o trabalho. Embora tivesse exposto com regularidade no Salão todo ano, de 1865 a 1869, ninguém ainda o notara.
   Em 1870 decidiu não inscrever nenhuma obra para a exposição do Salão. Era uma atitude de protesto contra o júri, de cujas ideias discordava, e um ato de solidariedade com um grupo de artistas que, principalmente por pintarem o cotidiano como ele próprio, encontrava sistemática rejeição por parte dos conservadores, o grupo dos “impressionistas”.
   A partir de então, exceto em 1882, Degas participou de todas as exposições anuais dos impressionistas, até a última, em 1886.
   A imprensa acabou por descobri-lo: “A série de novas idéias também se origina da mente de um desenhista, um dos nossos, alguém que já expôs no Salão, homem de raro talento e espírito ainda mais raro”, escrevia Edmond Duranthy.
   Mas Degas não se julgava parte do grupo dos impressionistas, preferia ser chamado de realista: em vez de pinta ao ar livre, preferia o estúdio, onde trabalhava de memória; em vez da tranqüilidade do campão, preferia a cidade buliçosa, com sua vida noturna e mulheres livres.
   Quanto a estas, as que mais desenharam e pintou foram as bailarinas, às quais dedicou mais tempo e às quais deve a melhor parte de sua fama.
   Com perseverança, tenacidade e curiosidade crescente, ele analisou cada um de seus gestos, movimentos, atitudes e posturas. De frente e por trás, de perfil ou viés, antes, durante e após o balé. Focalizou sua leveza, equilíbrio, agilidade, o esforço e a tensão da dança. Retratou-as atando as sapatilhas, sozinhas ou em grupo, em repouso ou exaustas após um ensaio ou espetáculo.
   Em algumas telas empregou linhas geométricas de arquitetura para subdividir o espaço em áreas onde arranjava as figuras com agudo senso de perspectiva.
   Degas nunca se casou. Mas as mulheres sempre foram o motivo principal de sua arte. Ele as usou para transmitir à posteridade um vislumbre de sua concepção pessoal da realidade e da vida cotidiana da sociedade de seu tempo. Passadeiras e lavadeira que trabalham em Montmartre, mulheres pesadamente maquiladas que passavam as tardes em cafés ou salões de beleza, meretrizes e cortesãs se banhando ou se penteando, mulheres de cena ou platéia em teatro, todas interessavam a sua visão meticulosa, mas descomprometida, isenta da sensualidade do voyeur.
   Ente 1876-77, Degas produziu suas obras mais importantes, entre as quais “Absinto” e “Café-Concerto Les Ambassadeurs”. Estas representam duas cenas parisienses que Degas bem conhecia. Cabarés e cafés de Paris eram parte do mundo dele.
   Degas pretendia expor em “Absinto”, com uma nota de denúncia moralista, o contraste entre essa atmosfera festiva, com tanta gente animada, e solidão que muitas vezes oprimia os protagonistas de seus quadros. Os dois personagens entorpecidos e emudecidos pela bebida atestam uma realidade marginal do “fin de siècle”.
   Em “Café-Concerto Lês Ambassadeurs”, Degas recorre a uma fórmula expressionista que leva ao impiedoso exagero do aspecto grotesco da cantora. Pode-se dizer o mesmo de “Cabaré”, pintado em 1876.
   O pintor não parava aí, utilizou-se de novas técnicas e variados meios de expressão. Nanquim, guache e aquarela eram apenas alguns dos recursos, e os mais simples. Inventou “monótipos”, desenhos que fazia recobrindo uma chapa de cobre com preto não oleoso, para depois nela criar uma imagem, com luz e sombra definidas a pincel duro ou trapo.
   Mais tarde, depois da morte de Manet, ele adotou técnicas mais próximas das impressionistas e continuava a experimentar.
   O que mais lhe interessava era o problema de representar o espaço. Os elementos enquadravam-se harmoniosamente, arranjados em composição perfeita, na qual as linhas cortavam e dividiam o campo em seções regulares, cada uma delas estudada em separado.
   Degas também se interessou pela escultura, “arte de homem cego”, assim Degas chamava a escultura. Quase cego, ele dependia do toque para moldar figurinos de cera de dançarinas e cavalos, que foram copiados em bronze após a sua morte. Enquanto Renoir comentava sobre as esculturas de Degas: “Desde Chartres até hoje, tivemos apenas um escultor: Degas. Aquele que fez as catedrais pode dar-nos a idéia da eternidade, a preocupação da época. Degas encontrou meio de exprimir a doença de nossos contemporâneos, devo dizer, o movimento. Somos inquietos, e inquietos são os cavalos e cavalheiros de Degas.”
   Conforme os olhos enfraqueciam, as cores de Degas se intensificaram, e ele simplificou as composições. Nos últimos pastéis, afrouxou a forma de manipular os pigmentos, fazendo-os explodir em riscos livres, vigorosos, em cores vivas, colocadas juntas para provocar o impacto de ambas. Ele fazia contornos decisivos nas formas, preenchendo-as com manchas de cor pura. Como sempre, os quadros de nus parecem apresentar um arranjo casual; tendo sido, entretanto, a estrutura subjacente, composta com firmeza e audácia.
   Os últimos anos de Degas não foram felizes. Os olhos embaçavam as imagens e acabaram por se tornar opacas.
   Morreu cego, aos 83 anos de idade. Muitos preferem lembrar-se dele como descrito por um amigo, Paul Lafond: “fronte alta, larga e arredondada, coroada pelo sedoso cabelo castanho; olhos vivazes, astutos e inquisitivos, sombreados por sobrancelhas circunflexas: boca fina e inteligente sob a barba macia”.