domingo, 23 de outubro de 2011

AMRIK, ANA MIRANDA - A SAGA DA IMIGRAÇÃO LIBANESA NO BRASIL: ANÁLISE E RESUMO DA OBRA



I – AUTORA:



II – CONTEXTO HISTÓRICO-SOCIAL:

"Os libaneses saíam do Líbano, pensavam que estavam indo para a América do Norte [...] e desembarcavam na América do Sul. Quando iam reclamar que estavam na América errada, o estafeta dizia: Tudo é América!"

No final do século XIX e princípio do século XX, muitos cristãos libaneses pobres emigraram para Amrik, uma corruptela de América, na forma como pronunciavam os imigrantes libaneses que se radicaram na capital paulista.
As primeiras datas da vinda dos libaneses podem ser fixadas antes de 1885 e se estende até 1950.


A imigração árabe em sua primeira fase se deu de forma bastante acentuada devido ao período de conflitos políticos e econômicos em razão do domínio do Império Otomano na região do Oriente Médio. A obtenção de riqueza fácil foi à causa principal das primeiras experiências.
A América desempenhou para os árabes o papel que a Ásia desempenhou para os europeus na Idade Média.
Esta primeira fase imigratória, caracterizada pelo espírito de aventura e improviso serviu como base para as outras fases do século XX quando os aspectos desta imigração sofrerão mudanças culminando com a integração dos filhos dos primeiros imigrantes na vida nacional.
Para Jamil Safady, em sua obra "Panorama da Imigração Árabe", a vinda dos imigrantes, em sua primeira fase, fez-se tradicionalmente com moradores do campo, lavradores ou proprietários de terras. Esses, porém, não vinham para dedicar-se a esta atividade, preferindo atuar no que parecia mais propício à obtenção de lucros rápidos, com os quais eles pretendiam voltar as suas terras de origem e dedicaram-se especificamente ao comércio e às pequenas indústrias, “os mascates” ou “turcos da prestação”.
A mascateação introduziu inovações que, hoje são traços marcantes do comércio popular, como as práticas da alta rotatividade e alta quantidade de mercadorias vendidas, das promoções e das liquidações. Inicialmente os mascates visitavam ás cidades interior e as fazendas de café, levando apenas miudezas e bijuterias. Com o tempo e o aumento do capital, começaram também a oferecer tecidos, roupas prontas e outros artigos.
Esse desejo esteve presente durante todos os movimentos de adaptação e todos os passos de construção da sua vida neste país.
Ana Miranda a partir de uma pesquisa histórica, e, de um diversificado inventário textual, analisa criticamente o contexto social e cultural dessa imigração, entrelaçando história e ficção, bem como, um resgate da herança cultural do Oriente no Ocidente.
A organização social do Brasil, especificamente a cidade de São Paulo desse período é retratada pela ótica de uma dessas imigrantes: a bela Amina, dançarina "dona de um narizinho de serpent of the Nile", através da prosa poética de Ana Miranda, em “Amrik”.

III - FOCO NARRATIVO:

As narrativas das imigrações libaneses no Brasil eram denominadas “Mahjar” e destacavam o papel dos homens, uma vez que a princípio era uma imigração econômica. Quando esta se transforma em imigração de assentamento, as mulheres libanesas entram em cena, em virtude da necessidade de transformar algo provisório em definitivo, estabelecendo núcleos familiares.
Ana Miranda constrói no romance, uma narrativa em primeira pessoa, de focalização feminina, permitindo a reinterpretação da história da imigração pelo olhar de Amina, que rememora sua saga pessoal, desde a infância no Líbano, passando por uma frustrada experiência na América do Norte, até a sua chegada ao Brasil, onde, finalmente, se estabelece.

“...duas imigrantes passam com cestas de compra rumo ao Mercado, nesta cidade a mulher que faz compra no Mercado é imigrante, arifa, operária, as imigrantes nunca passeiam, molas feitas de trabalho,vidas diluídas, fumaças de chaminé fufu feitas de perdas e adeuses, moram nas partes escuras da cidade, nas casas olhadas, entre os ratos e os morcegos, entre os caixotes vazios e as sacas nos depósitos, nos armazéns, detrás dos balcões, nas margens dos rios um capim de fuligem e fumaça feito os navios belas coisas mesmo sujas e pretas, elas sempre querem passar para o outro lado da cidade, mas são apenas mostardinhas ardidas ou umas cadelasdascadelas, corpo de faschefango galho e barro ou a casa a Ana ou vira putana ou casa a Beatriz ou vira meretriz haialaia tutti senza denaro, mijar na cova e lamber o dedo hmmmm elas olha para mim e estira a língua, elas ficam tão vermelhas que parecem as telhas e apressam o passinho de garridice nos sapatos barulho de ferraduras.” (p. 186)

IV – ESPAÇO E TEMPO:

“Amrik” retrata a breve passagem da protagonista Amina pelos Estados Unidos e posteriormente, fixando-se no Brasil, na cidade de São Paulo, na rua 25 de Março onde se estabelecem, no final do século XIX e início do século XX.
Os espaços que se entreabem são modalidades de travessia humana: Oriente e Ocidente fundem-se na figura de Amina, que forma, deforma e transforma-a.
Ao contrário do que ocorre nas crônicas de viagem tradicionais, o tempo não é registrado cronologicamente ao longo do romance, mas faz-se sentir pelo processo de formação que a personagem sofre: de menina ingênua das montanhas à mulher sensual da cidade.

 V - LINGUAGEM:

Ana Miranda explora inovações linguísticas, recursos da modernidade literária, em termos de forma e de sentido. Trata-se de uma linguagem fragmentada e viva que convida o leitor a um constante esforço de organização e pesquisa.
O romance vem escoltado por um minucioso glossário de quase 100 termos, a maioria de origem árabe. São absolutamente dispensáveis, pois a escrita de Ana Miranda prende o leitor mais pela sensualidade que pela razão. Mesmo nos trechos em que assume uma postura didática, como na página 53, quando enumera, paciente, 65 palavras da língua portuguesa derivadas do árabe e iniciadas por "al", de alfinete a almofariz, "só para dizer as mais conhecidas", não permite que lhe fujam a batida sensual, o traço ondulante, a magia.
A escritora incorpora em sua linguagem o ritmo da prosa poética, as onomatopéias, as metáforas, as passagens de pura poesia, a transfiguração literária da oralidade, da fala das personagens, os ditados populares, da musicalidade e também a sua dimensão metafísica, enfim, os recursos que permitem a transposição artística da herança cultural árabe.
Percebe-se a pulsação das palavras resultante da ruptura com o enredo factual, que, cede espaço para a fragmentação do fluxo do pensamento de uma oriental que, aos poucos, tenta se adaptar a vida no ocidente e divaga com expressões em português, inglês e árabe, com escassa pontuação.
Tecido com antigos poemas árabes, das imagens fantásticas de Sherazade d’As Mil e uma noites, receitas de cozinha, parábolas, crenças religiosas, é um romance sobre a imigração libanesa para a América, que reflete acerca do amor, do erotismo, do trabalho e do nacionalismo.

 VI – ESTRUTURA:

A narrativa é cíclica ou circular: começa e termina no Jardim da Luz, São Paulo-SP, quando o tio da narradora, Naim, transmite-lhe o pedido de casamento do mascate Abrahão.
A obra se compõe de 154 capítulos breves, que traduzem o fluxo de memória de Amina. A cada página Amina vai se descobrindo e revelando-se, e, o leitor, aos poucos, se aprofundando na cultura libanesa, através da visão da narradora-protagonista.
A sereia não somente ilustra a capa do livro, como também vão percorrendo o interior da obra como uma forma de desvelo que com todo seu mito de “metade peixe, metade mulher”, “encanta com seu canto e causa sofrimento a quem ela escuta”. Amina se apropria de todas estas características mitológicas e vai, juntamente com a sereia (desenhos) transformando-se.

VII – RESUMO DO ENREDO:

“Ser livre é, frequentemente, ser só.”
  
Amina alegoriza a condição de mulher numa sociedade regida pelo patriarcado. Seu desejo de independência não condiz com as convenções sociais, em uma época onde o ideal de felicidade feminino resumia em ser esposa, mãe e dona de casa.
O preço da libertação de suas amarras sociais é a sua solidão.

“...viver numa casa imensa, de avental contar ovos, bater manteiga, ralar abóbora, picar amêndoas, a natureza nos dedos, regar uma horta no quintal, alface hortelão tomilho, ter sexo na noite abençoado, açúcar cristal na língua hmm. Nas coisas mais simples está o sentido de Amina”.

A protagonista encontrava-se no Jardim da Luz, em São Paulo, no final do século XIX, junto a seu tio Naum Salum, quando este lhe perguntou se aceitava casar com o mascate Abraão.
A proposta de casamento transporta Armina a um processo de descoberta individual, desvendando o seu inconsciente e causando-lhe conflitos existenciais. O momento caracteriza-se pela exacerbação da interioridade, de tal modo intensa, que, a própria subjetividade entra em crise.
O contraste da opinião de seu tio a cerca do casamento e da felicidade resumia na sujeição física aos desejos do mascate; ter de viver numa casa cheia de gente e sem privacidade; cozinhar para quinze pessoas; viver para ganhar dinheiro; sonhar com o retorno ao Líbano; representar a cada noite, uma mulher diferente para o encantamento do marido, e, estava muito distante da busca incansável de sua identidade e de seu sonho de dançarina.
Ana Miranda, nesse momento, instaura no romance, através da protagonista Amina, as angústias e os dramas interiores das mulheres que, descobrem a impossibilidade de uma existência individual diferente daquela almejada e sintetizada na reformulação de um ditado popular que sintetiza o desejo da narradora:

“Mais vale um pássaro na mão que dois voando, não, mais vale um pássaro voando, de que vale um pássaro que não voa?

Essa desconstrução intimista da personagem faz com que seus pensamentos e lembranças assumam uma função libertária, remetendo-a desde a sua infância numa aldeia do Líbano até seus dias atuais, em São Paulo.
O espírito, perdido no labirinto da memória e da auto-análise reclama um novo equilíbrio, transcendendo do plano da realidade para o psicológico.
Amina recorda-se que nunca sentira à vontade em sua casa, visto que, mesmo entre a sua gente, a sua família era tratada de modo diferente, como estrangeira. Esse sentimento de inadequação e rejeição perseguirá a protagonista em toda sua travessia de vida.
Amina questiona se a razão de tanta indiferença não era o fato de que sua avó Farida, ser vista como um estereótipo de transgressão, por ter sido um dia, dançarina, uma “gháziya”.
Em uma sociedade marcada pela convenção e moderação de comportamento, o passado de Farida, maculou a honra da família. 
Amina amava sua avó, mulher guerreira que a criou com amor e carinho, substituindo sua mãe, já que a mesma abandonara a família, quando ainda Amina era menina, indo também, em contramão aos conceitos patriarcais.
Foi através da avó que aprendera às escondidas a dançar e herdar as suas tradições ancestrais: as danças, a culinária, as lendas, o repositório da memória coletiva de seu povo passado de geração a geração.

Amina possui os traços físicos da mãe e é vítima da rejeição paterna. Seu pai, Jamil, inconformado por ter sido abandonado pela mulher, transfere para todo o gênero feminino o ódio que a traição lhe causou.

“Bêbados falavam mal de suas mulheres, das mulheres de todos, papai voltava para a casa bêbado e abria o estojo da faca, maldizia mamãe Maimuna comedora de tios-felpudos mulher quando fala mente quando promete não cumpre quando cumpre volta atrás quando nela confiam trai quando não trai fere revela facilmente sua parte íntima a qualquer um lança olhares a todos semeia discórdia um homem não pode partir para a aldeia vizinha nem por um dia se voltar antes vai encontrar a mulher na relva com um negro Ó mulheres em multidão não conseguis suportar pacientemente a ausência do objeto peludo nem por um dia?” (p. 16)

O tio Naim, escritor intelectual cego, é ameaçado de morte por causa de suas convicções políticas (crítica às invasões turcas no Líbano) e religiosas (defesa do cristianismo) e, é obrigado a deixar o Líbano. Por sua deficiência física, solicita que um dos sobrinhos o acompanhe como guia, nessa dura jornada.

 “Por causa dos turcos e dos mulçumanos que queriam matar tio Naim porque escrevia contra eles tivemos de partir de nossa aldeia, tio Naim encheu um baú com seus livros, umas jóias de ouro para trocar por comida ou roupa, uma manta de pelo de carneiro e nada mais, pediu a papai que mandasse um dos filhos acompanhar, papai olhos os filhos, todos de olhos arregalados, num silêncio fundo, um dois três quatros talvez todos os filhos homens quisessem cinco ir mais papai escolheu o filho que menos lhe servia, seis a única filha mulher, para que servia uma filha mulher? Os filhos iam casar e quando vovó Farida morresse as esposas iam cuidar da cozinha e fazer mais crianças para o trabalho na agricultura, ele me achava vaidosa, dissimulada, meu rosto lembrava o da minha mãe e isso fazia papai sofre ainda mais... (p. 22)

A oportunidade de se livrar da imagem de sua esposa adúltera refletida no semblante de Amina, uma mulher “ardilosa”, fez com que a única menina, fosse escolhida para acompanhar o tio cego.
Tio Naim, homem erudito e representante alegórico da herança árabe, torna-se o mentor de Amina. Ele é apaixonado por livros, mas a cegueira não o permite apreciá-los, então ensina Amina a ler, a escrever, para que ela possa contar-lhe as histórias dos livros, bem como, as palavras em outros idiomas: francês, inglês, grego e aramaico, porquemulher saber língua estrangeira é abrir uma janela na muralha.” (p. 27)
Na partida, a avó lhe dá os seus pequenos tesouros: o tamborzinho de mão, os címbalos e o pandeiro, relíquias que selaria para sempre o seu destino.
A sua origem, suas raízes, suas amarguras e submissões são deixadas para trás e a ansiedade de um novo mundo aflora suas expectativas: 

“...ia queimar talismãs para o navio chegar logo e me levar para Amrik, guiava tio Naim nas ruas, recebia cartas de papai, da aldeia, cartas que me faziam chorar, cruéis, se eu era suave ele brigava se eu era fria ele cuspia se eu dizia elogio ele ignorava de noite na cozinha ele falava mal de mim com a Abduhader, falava mal de mamãe com os outros bêbados de noite e falava mal da mulheres todas ela.” (p. 26)

Logo no início da viagem, as primeiras desventuras surgem. No lugar donavio moderno, veloz e iluminadopelo qual ansiavam, depararam-se com:

“...um ferro velho sujo enferrujado com carne humana amontoada arrre irrra terceira classe dormiam no relento água racionada salobra nojenta arghhh para qualquer coisa era preciso dinheirinho, beliches duros imundos insetos sugavam o sangue de noite ratos mordiam comiam nossos sapatos mofo calor umidade sal vomitava vomitava arre o camarote era para quatro mais oito ocupavam os quatro lugares eu dormia na mesma enxerga com tio Naim e não podiam levantar os dois ao mesmo tempo que alguém estava sempre pronto para ocupar nosso lugar arre.”  (p. 28)

A viagem é acompanhada pelas histórias narradas por tio Naim ou pela leitura que Amina faz dos livros escolhidos por ele, que por questões ideológicas, privilegia as leituras verdadeiramente, árabes, temendo perder seus laços de amor à terra natal.
Para ele: “a literatura árabe lembra sempre a existência de outros mundos além deste que podemos ver e tocar mas não compreender.” (p. 30), mundos como o universo ficcional, em que a realidade é continuamente transformada e recriada.

“...literatura das montanhas e dos desertos sem nunca criar fronteiras entre o real e o irreal como o mundo fora uma miragem (...) uma literatura que pode ser feita e usada por pessoas que não sabem ler nem escrever, mas se ouvem entendem e podem recontar que são histórias e mais histórias e assim foi uma grande parte dela, os livros antigos eram muitas vezes apenas a memória do recitador; outras vezes, eram escritas em letras de ou nas paredes mas fosso como fosse, nunca rompeu com a tradição e nunca romperá ainda que sejam os poetas chamados de imitadores (...) se a literatura árabe é a alma árabe, todavia, não é o mundo árabe o que as pessoas pensam, pensam que o mundo árabe são as Mil e um noites hahahah.” (p. 31)

A narradora, assim, apresenta a necessidade de destruir valores atribuídos à imagem eurocêntrica do Oriente de um mundo exótico, para propor um novo olhar para as mazelas dos conflitos políticos e religiosos, vivenciados pelos povos de origem árabe.

A parte 2, intitulada “Amrik”, retrata á estada de Amina na América do Norte.
Amina e Naim sustentam o sonho de estar se dirigindo à América, a tão sonhada Amrik, no entanto, são retidos em Beirute, onde ficam à espera de passaportes turcos e de vagas no navio. Muitos acabavam por desembarcar no Brasil, no porto de Santos, considerados indesejáveis.
O resultado desse embate foi á separação do tio Naim e Amina.
Amina emprega-se como dançarina em uma Feira de Negócios e o tio, “cachorro-morto”, é despachado para a outra América.
Neste contexto outra transformação ocorrerá em Amina: o desejo de alcançar sucesso a qualquer custo através de sua arte.
A possibilidade de novos rumos, a euforia advinda dos atrativos da América, o cenário cultural e a tendência à individualidade extrema fazem com que a solidariedade familiar e a herança cultural sejam postos em segundo plano pela narradora.

“...eu pensava que ia ficar rica verdadeiramente rich era a terra das liberdades das oportunidades ia me vestir como a rainha de Sabá ia me cobrir de jóias perfumes chapéus com plumas de veludo....” (p. 36)

O sonho, no entanto, se dissolve rapidamente:

“...muito trabalho a meio dólar por dia, jornada de dez horas mas trabalhavam dezesseis, haviam marcado a minha pele com uma etiqueta na alfândega e me deram um banho, mudaram meu nome no papel, acabou a feira e me soltaram na rua.” (p.36)

Desempregada e solitária, Amina vai dormir na rua, nos dormitórios e nos cortiços de imigrantes, onde crianças e velhosmorriam como moscas envenenadas”.
O choque entre as culturas é perceptível nas lembranças de Amina.

“...as casas eram de madeira, as galinhas ciscavam na rua, os carros para lá e para cá numa velocidade estupenda e as pessoas não se matavam por religião diferente da nossa mas eu não condenava a religião deles, rudes e falavam alto, havia desempregados, policiais estúpidos arrogantes patrões ladrões greves de empregados nas máquinas das fábricas comida em lata solidão falta de falar a língua falta da comida da vovó Farida falta de amigos falta de um corpo falta de amor.” (p. 37)
  
Essa reconstituição, porém, permite que o passado seja reavaliado e que sua importância seja reconhecida no presente.
O tio Naim, através de cartas, acena à sobrinha a possibilidade de vinda para o Brasil. No desejo de compor um retrato da cidade de São Paulo, é possível detectar a pesquisa da autora no intuito de fornecer informações sobre a cidade, na época em que se passa a história.

“...havia na cidade de São Paulo cento e quarenta e seis lojas de fazendas e ferragens, sessenta armazéns de gênero de fora, cento e oitenta e cinco tavernas, todos pagavam direito à municipalidade...(...) Vem Amina minha flor de luz (...) vem para São Paulo.” (p. 39)

Amina vê a vinda para o Brasil como uma derrota, poiso Brasil era um lugar de abismos e depósito de imigrantes cachorros mortos que não conseguiram entrar na outra América (p. 45) e resiste o quanto pode à ideia de deixar a América do Norte, o seu “eldorado”.

A solidão, no entanto, é um flagelo diário, que faz com que um mero cumprimento, ou mesmo umas palavras trocadas, desperte em Amina uma fome descontrolada de amor e carinho:

“...à luz da vela escrevi cartas para tio Naim, para a vovó Farida para meus irmãos, para desconhecidos, uma carta para um homem de cabelo vermelho que eu vira atravessar a rua, uma carta ao Mark Twain uma carta a um remador que me dissera Good morning na fonte Bethesda no terraço de onde saiam remadores em barcos compridos, voltei à fonte uma dezena de dias e nunca mais vi o remador mais deixei para ele uma carta de amor (...) a carta marcada um encontro e no dia marcado esperei esperei brbrbrbrbrbr gelada mais ninguém apareceu, veio um policial de ronda, quem sabe porque fazia muito frio o remador não veio, caía neve suave o policial me fez umas perguntas, quase me apaixonei por ele.” (p. 41)

A condição de desamparo e com os sentimentos mais arrebatados forçou-a a vir para o Brasil.

"Eu pensava que o Brasil era um lugar de abismos e depósito de imigrantes cachorros mortos que não conseguiam entrar na outra América, Brasil era um lugar de fracos, mercadores persas chineses tomadores de ópio negros africanos com cigarros saindo fumaça na orelha, insetos e charcos e enchentes e uma cruz no céu para mim queria dizer morte, crucificação de Jesus e o nosso sofrimento ia ser  ali debaixo da cruz como Jesus sofreu na cruz, no Brasil havia padre demais e religião cada uma tão tola que nem brigavam por elas, pobreza, gente deitada nas ruas,  jumentos zurrando na sombra das árvores [...]"

Os capítulos seguintes retratam o cotidiano do imigrante libanês no Brasil que girava em torno do Tamanduateí, parte nova da cidade, sem nenhum progresso; as dificuldades de adaptação na nova terra; bem como a transformação urbanística da cidade de São Paulo, como o desvio do rio para fazer a Rua 25 de Março.

No começo, disse tio Naim, vinham os italianos e os alemães à porta ver despejar de mais árabes, riam de nossos modos, contavam histórias engraçadas sobre nós e não tinha medo (...) mas os mascates foram prosperando e de miseráveis ambulantes descalços que vendiam cigarros em bandejas dependuradas no pescoço ou quibe frito em tabuleirinhos passaram a mascates de santos de madeira e escapulários depois a mascates de tecidos botões linhas arre, assim os mascates se tornaram perigosos usos traiçoeiros ambiciosos usurários (...) mas não somos o que eles pensam, libaneses são limpos cultos, temos a Université dos jesuítas e a Universidade Americana, sabemos falar inglês grego francês, sabemos ler escrever, inventamos álgebra astronomia matemática, os algarismos arábicos o alfabeto, disse tio Naim, trouxemos para ocidentais a laranjeira o limoeiro o arroz, ensinamos ocidentais a melhor cultivar a alfarrobeira e a oliveira, a criar cavalos, a plantar uvas, figos e imensas maçãs, a regar, a pintar as unhas, fazer hortas de verduras e talhões de legumes, mais de seiscentas palavras à língua dos lusis.” (p. 52)

O capítulo intitulado “Ilhas de Elisã” contém palavras 65 começadas com “AL” que foram incorporadas ao português, evocando de forma concreta no discurso a herança cultural árabe e reivindicando um espaço social, poisos árabes são como avós dos brasileiros” (p. 53)
Outro aspecto presente na narrativa é a preocupação em informar que a ascensão social dos libaneses despertou não apenas a inveja de outros grupos de imigrantes, mas também dos brasileiros, o que contribui bastante para a criação e manutenção de estereótipos negativos.

“...chegavam as pessoas todas de uma mesma aldeia, gente do cultivo que vinha para a agricultura mas acabava mascate, ganhava mais dinheirinho, trabalhava para ninguém, problema dos libaneses que pensavam na aldeia, disse tio Naim, não pensavam no país, se falavam pátria diziam aldeia, sua terra sua aldeia queria dizer sua aldeia sua alma. (...) (p. 55)

Esse posicionamento alimenta a imaginação do imigrante e o transportam para dentro de um mundo ficcional, fazendo o esquecer os reais motivos pelos quais teve de deixar sua terra e seus sonhos para trás.

A parte 4, “Mezze”, retrata a vida na casa de Naim. Os textos constituem um resgate da culinária, da cultura e dos costumes libaneses. A tendência dos imigrantes se agruparem com seus conterrâneos é devidamente representada:

Tio Naim estudou na Université dos jesuítas Saint Joseph, escrevia para o ALK-Ahram e agora pediam para escrever sobre imigrantes, dinheiro, política, república, ele gostava de república porque trazia prosperidade, os escritos do tio Naim eram discutidos por libaneses nos mezzes aos domingos, senhores de muitos espíritos contrários e dados a leis da imaginação, mais levados por seus sonhos do que pela realidade, cada qual vendo mais a distância que a proximidade, misturando árabe com português (...)” (p. 62)

Assim, aproximam-se dois elementos que, em um contexto específico, guardam alguma relação de semelhança, transferindo-se, para um deles, características do outro, bem como o desenvolvimento de uma interlíngua e a desconstrução paulatina do sonho do retorno à terra natal.

“...um dia vão perceber que a vida passou, ficaram aqui fazendo fortuna e não voltaram e nem ficaram ricos, só alguns. Entendam logo isso e façam os cemitérios clubes igrejas mâdrassas que nos dos outros não nos aceitam...” (p. 64).

As personagens Chafic e Abraão são apresentadas como representações de duas fases distintas da imigração libanesa. O primeiro representa o imigrante da primeira geração, viajando de cidade em cidade, mascateando. O segundo aponta para uma segunda geração, para uma rede de conterrâneos a dar suporte uns aos outros. Os homens dessa nova leva encontram os primeiros aqui fixados, muitos deles atacadistas, podendo, assim, lhes fornecer mercadoria e ensinar a língua e os conhecimentos básicos para o exercício das transações comerciais.
A sondagem do mundo interior das personagens e a integração do imigrante libanês à sociedade brasileira, observada na obra, sugerem uma espécie de metamorfose determinista.

Abraão abriu a canastra mostrou como vendia renda, bordado, retrós sabonete meia dentifrício coisas pequenas pesam pouco, vendem fácil, preço bom, crédito, lágrimas no olhos, Logo aprendes a língua e se sabes umas poucas palavras podes trabalhar por tua conta, sais de manhã cedo mesmo que chova levas pão farinha pudim de palmito bocajuva vais de casa em casa nos bairros da Sé Santa Ifigênia, havia um mapa da capital da província de São Paulo, Abrão tinha lista de fregueses.” (p. 176)

Estudos sobre a imigração têm comprovado que a música e a culinária são marcas de resistência de imigrantes de primeira geração à aculturação absoluta, ou assimilação, operando como expressões privilegiadas de uma vida entre dois mundos.  No entanto, no romance, o espaço da cozinha, “o lugar do mundo onde uma mulher pode sentir a si, sem precisar dos machos árabes” (p. 130), com seus odores e sabores, é evocado como um dos lugares onde a mulher árabe não experimenta a subalternidade.
O comportamento de Amina, no entanto, contraria a imagem das mulheres imigrantes que descreve, pois é avessa ao trabalho doméstico, preocupando-se, apenas com a dança.  E, esse comportamento reflete a construção de uma imagem estereotipada da mulher oriental com sedutora, sensual e exótica:

“...eu sabia o que diziam mal de mim, dançar era mandar homem nas casas de putas eles em cima delas mas a cabeça em mim, que tudo era para gastarem em mim seus dinheirinhos e eu ficando rica e eles pobres...” (p. 69)

A arte da dança tem papel equivalente, pois é por meio dela que a mulher pode atrair um homem, fazendo-o “andar mil passos num vale ou atravessar um deserto sem camelo.” (p. 20)

Uns homens daqui mandavam buscar mulheres nas suas aldeias no Líbano, mulheres da sua mesma religião maronita e de virgindade virgindade sempre virgindade, alguns mascates logo que ganhavam um dinheiro voltavam a suas aldeias para escolher uma mulher, traziam a mulher para o Brasil ou deixavam a mulher lá e voltavam sozinhos, outros casavam com uma brasileira e voltavam com ela para sua aldeia no Líbano, um mascate casou com uma brasileira e levou a brasileira para Beirute, lá estava outra mulher e a brasileira não aceitou a bigamia, o marido deixou a brasileira na rua, ela ficou perdida nas ruas e ia virar mendiga ou prostituta de turcos, na sala de tio Naim eles discutiram o destino da perdida (...) decidiram trazer de volta a brasileira ai que sacrifício pagar passagem assim para brasileiro tanto libanês precisava trazer mãe ou pai ou irmão, não ia custar tão caro, Mais caro é ter boa reputação...”(p. 67)

A parte 5, intitulada “A casa de Amina”, relata a tentativa de independência da narradora, de preenchimento de um vazio interior que ela não consegue diagnosticar.
Ela vai morar em um sobrado na Rua 25 de Março, em meio ao burburinho de pessoas, os odores estranhos dos lusis, as lágrimas sufocadas da portuguesa, o agarramento do português com a empregada negra na escada, o frio intenso no inverno e o calor absurdo no verão. Os poucos objetos que leva com ela apontam uma característica da personalidade de Amina: a facilidade com que se encanta e desencanta, com os fatos e as coisas.
Assim é que se apaixona por Chafic, um mascate que vê pela janela a tomar banho nu, no rio. Através de Ternura, a empregada de Naim, fica sabendo que ele é mascate de fogos de artifício e que, quando não está no Mercado, vai de aldeia em aldeia no Mato Grosso.
A dançarina acostumada a brincar com a atração dos homens rende-se a uma única visão daquele corpo masculino. E, mais uma vez, os odores e os sabores da culinária árabe surgem para metaforicamente expressar a ebulição em Amina:

“...nunca mais na minha vida o veria, nunca no exterior de mim apenas o veria no escuro de minhas pálpebras, nu encostando sua língua na boca da mulher; fora ele um castigo mandado pelo Deus dos maronitas para eu pagar minhas maldades todas que fiz contra os homens, Chafic moeu meu coração, marinou temperou com pimenta intercalou num espeto com pedaços de lágrimas de cebola assou na brasa grelhou e não comeu...” (p. 88)

Da parte 7 em diante, o diálogo da história cede lugar à história pessoal de Amina, que é contratada pra dançar no casamento do mascate Abraão. Por recomendação do pai da noiva não deveria executar a dança do “al nahal”, o que acaba por fazer, deixando os homens presentes hipnotizados, o velho “fellah” revoltado, um casamento desfeito e uma noiva suicida.
O romance termina no mesmo ponto que começa: com o tio Naim perguntando a Amina se ela aceita casar-se com o mascate, que retorna rico da América do Norte e que nunca a esquecera. Dessa forma, obra nem começa, nem termina: ela continua.
“Amrik” antes de ser um romance de resgate da imigração libanesa no Brasil, é um romance psicológico. Não há etapas de um drama. Cada pensamento envolve todo o drama: logo, não há um começo definido no tempo, nem um epílogo. Há um contínuo denso na experiência existencial e o reconhecimento de uma verdade que despoja o “eu” das ilusões cotidianas e o entrega a um novo sentido da realidade.
Amina busca em si mesma, pela introspecção radical, sua identidade e as razões de viver, sentir e amar.
As formas de vida convencionais e estereotipadas vão se repetindo de geração para geração, submetendo as consciências e as vontades.
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Um comentário:

Anônimo disse...

esta de parabens todaa a analise!! muito util, adorei..