terça-feira, 19 de abril de 2011

GUSTAVE COURBET (1819-1877) E O REALISMO FRANCÊS

"O Desespero" (1845), autoretrato de Courbet

Quando lhe pediram que pintasse anjos, respondeu: “Nunca vi anjos. Se me mostrarem um, eu pinto.”


COURBET é considerado o criador do realismo social na pintura e o autor do seu termo.
Homem de grande pragmatismo veio de uma família aristocrática, o pai proletarizou os servos e doou terras ao Estado, enquanto que Courbet era socialista.
Revolucionário por natureza, ardente defensor dos pobres, participou da guerra franco-prussiana e, por causa de suas ideias liberais, chegou a ser exilado na Suíça.
Sua pintura é dotada de um sentimento de vitalidade natural ao abordar cenas do cotidiano, principalmente das classes populares. Sua obra manifesta especial simpatia pelos trabalhadores e membros mais pobres da sociedade.
Foi preso por seis meses por danificar um monumento napoleônico.
Detestava a teatralidade da arte acadêmica, bem como suas figuras monótonas ocupadas em tarefas cotidianas.

A pintura é essencialmente uma arte concreta e tem de ser aplicada às coisas reais e existentes”, disse ele e acrescentava que “tudo o que não aparece na retina está fora do domínio da pintura.”

Estudante extremamente dedicado, em 1944 Courbet já tinha elaborado um estilo próprio caracterizado pela grande vitalidade ao retratar cenas da natureza, e já isento do intelectualismo neoclássico e do sentimentalismo romântico. A seguir, ele abandona o pincel, inaugura uma nova técnica de pintura utilizando uma espátula de aço, com a qual generosamente empasta a tinta sobre a tela. Esta é mais uma das características que fazem de Courbet, um dos heróicos precursores da pintura moderna, qualidade que despertará intensa admiração de Cézanne.
Por essa época, Courbet já havia definido um método de criação próprio, instintivo e aberto a todo tipo de modificações. Quando começava um trabalho, não sabia ao certo como iria terminar.

O quadro se portará por si próprio”, dizia ele.

O artista considerava que tema, cor e composição nasciam espontaneamente durante o processo criativo. Courbet afirmava que “um pintor deve estar sempre preparado para reproduzir sua melhor tela a qualquer momento”.
Esse seu estilo, uma espécie de realismo primitivo, causava grande indignação entre os românticos, pois estes alegavam que seus quadros, com mulheres solidamente construídas e repletas de densidade, não eram passíveis de inspirar um poeta nem transformá-las em poema.
Suas telas não contavam uma história. Ao contrário, elas preocupavam-se somente em revelar um momento único, transitório, completo em si mesmo e auto-explicativo.
O ano de 1847 é essencial para sua formação como artista. Um momento decisivo não só pra ele, mas também para toda sua geração: é o ano da instauração da República, e Courbet participa ativamente das lutas nas barricadas. Sua melhor pintura nunca teria existido sem esse acontecimento político.
A Revolução de 1848 fez com que Courbet tomasse a decisão definitiva de sua arte em termos de participação ativa na realidade. Nessa época, o romantismo já não conseguia esconder seu aspecto conformista. Devido às suas contraditórias concepções políticas, e uma origem tipicamente pequeno-burguesa, desvinculada da realidade social do país, acabaram por não entender o que havia ocorrido em 1848, e ao testemunharem o despertar daquelas gigantescas massas operárias, e sua poderosa força social, os românticos sentiram-se acuados e tornaram-se abertamente conservadores.
Courbet ganhou a antipatia do público artístico do seu tempo com um realismo que ultrapassou de longe os limites das boas maneiras.
Seu antiintelectualismo; anticlericalismo; seu enfoque antisentimental; o não privilégio da figura feminina; sua paixão pela presença física, principalmente pelas classes trabalhadoras e sua convicção de que tudo o mais era uma evasão, uma fuga à verdade, converteram o pintor no mais atacado artista de seu tempo. Enquanto isso se reunia para compartilhar opiniões com seus amigos, entre eles o pintor e notável teórico anarquista Proudhon, o escritor Baudelaire e o irônico caricaturista Daumier.
De fato, os homens de seus quadros não expressam nenhuma emoção e mais parecem parte de uma paisagem do que seus personagens, retratados com uma profusão de pretos, ocres e marrons, banhados por uma pátina cinza.

"O Retorno da Feira de Flagey”, 1848, quadro que inaugura o realismo francês.


Suas mais belas obras são as paisagens, mas seu âmbito era vasto e incluiu natureza morta; nus; representação retratista monumental como em “Enterro em Ornans” (1850); cenas da vida rural apresentada com a grandiloquência e uma quantidade de grandes quadros celebrando a grandeza e a humanidade.

O “O Atelier do Artista” (1855) sintetiza seus interesses.

“Interior do meu ateliê – Uma Alegoria real resumindo sete anos de minha vida de artista” (1854-55).


Courbet, nessa tela, retrata as duas esferas de influência que afetaram sua arte: à esquerda estão às pessoas comuns, camponeses, caçadores furtivos e mendigos que são seus temas, a sua própria realidade e, à direita, representantes do mundo artístico - Zolà de barba e Baudelaire lendo.
No centro, encontra-se uma criança admirada e uma modelo nua.
É importante notar que a modelo nua não está sendo retratada no quadro que o artista está trabalhando e cuja presença no estúdio repleto de gente, era uma afronta à decência. O próprio pintor está sentado concluindo uma paisagem com belos gestos líricos.
O ponto local é um autorretrato do artista produzindo outro quadro. Sua posição pivô em meio aos dois mundos implica que o artista é algo como que um intermediário, ligando o mundo real ao mundo da arte.

 
Courbet concluiu que a pintura tinha exigências próprias. O pintor nunca gostou dos arranjos convencionais com figuras cuidadosamente inseridas numa disposição ilusória. Unindo seus conhecimentos de equilíbrio e unidade total da tela, o artista conseguiu criar uma composição inovadora utilizando-se de sua habilidade no tratamento da luz e da sombra, além de um apurado estudo estrutural para unificar um aparentemente acidental e irrefletido agrupamento de pessoas.

Este sem dúvida foi o quadro mais ambicioso de Courbet e sua declaração de independência e seu maior testamento.
Trata-se de uma pintura processual (quando mostra o seu ateliê, ele não deveria se mostrar, mas, está trabalhando lá, com outra pintura e não olha para o espectador).
Há também a presença de um gato e o ambiente é opressivo remetendo a uma crítica ao Salão.
Quando um júri de arte recusou-se a exibir essa obra do pintor, Courbet construiu um barracão (dessa forma, indiretamente, inaugurou o mercado de arte, as galerias) particular, chamado “Pavilhão do Realismo de Courbet”, cobrou ingresso e foi o primeiro espetáculo solo que já houve.

“Enterro em Ornans”, 1849.


Trata-se de uma tela de 6,6 m de comprimento por 2,00 m de altura. O artista retrata um funeral de uma pessoa comum, na província de Ornans, cidade natal do artista, em tons terrosos frios. Nunca uma pintura realista realizada em escala histórica pelo tamanho, representou a realidade proletária, reservada somente para obras históricas grandiosas. Os críticos criticaram afirmando que era tristemente vulgar.
A pintura não apresenta perspectiva, técnica para representar o espaço e objetos tridimensionais numa superfície plana; a profundidade é gerada pelas montanhas e ao mesmo tempo, quebrada pela cruz e não se encontra num plano espacional.
As pessoas retratadas perdem a sua individualidade, são massificadas, uniformizadas, iguais, como representantes de um coletivo: a camada social a que pertencem.
O cachorro é a primeira imagem que chama a atenção. Ele não tem raça, é um viralata, um cachorro “qualquer” como as pessoas retratadas, remetendo a um mundo de pobreza e banalidade.
O tamanho da cova é diminuto como se o defunto fosse insignificante e só é notado, com o auxílio do título da tela, caso contrário passaria despercebida.
Com a paleta suja, sem plano e pouca cor (o que não é preto é castanho, exceto a cor das batinas dos religiosos), Courbet provou que para mostrar a realidade não podia utilizar-se de técnicas conservadoras-tradicionais, tinha que ser inovador e revolucionário; pois, a forma é compatível com o conteúdo.
Na época, Courbet foi perseguido por uma série de calúnias ao seu respeito e a reputação de “pintor de vulgaridades” o acompanhou por toda a vida.
Contam-se histórias de que em alguns cafés parisienses frequentados por artistas, eram exibidos cartazes que proibiam que discutissem as pinturas de Courbet, ou que em uma exposição num Salão de Outono, Luis Napoleão, em fúria, chicoteou um de seus quadros taxando-o de imoral.

"Os Britadores de Pedra”, 1850.


A primeira tela que exprime plenamente o seu realismo pragmático, "Os Britadores de Pedra", foi ironicamente destruída em 1945, quando dos bombardeamentos aliados à cidade de Dresden.
Sobre a obra diz-se que Courbet encontrou dois trabalhadores numa estrada e pediu-lhes que posassem no seu atelier. Pintou-os de tamanho natural, de forma objetiva e desafetada.
O rosto do rapaz está voltado, não permitindo ver suas feições, enquanto a do velho permanece meio oculta pelo chapéu. Ambos agem no movimento resultante da sua atividade, dando assim, uma sensação de movimento suave e cansado. Todavia a escolha das personagens não pode ter sido feita de um modo aleatório: o contraste de idades é significativo - um demasiado velho para a tarefa e, o outro, demasiado jovem. Pode-se até induzir certo determinismo dramático - o futuro reservado ao jovem é retratado em seu velho companheiro.
No entanto, estas interpretações são exteriores à obra, isto é, subjetivas, pois que não partem do artista, mas sim do observador. O que esta obra retrata são duas figuras desempenhando a sua atividade, isentas de uma especial dignidade ou susceptíveis de compaixão. É este o Realismo puro e cru, que encerra a proposta de Courbet e, ainda hoje tão mal entendido, fortemente criticado pela trivialidade e falta de conteúdo espiritual.

“Moças peneirando trigo” (1853-1854).


As personagens desse quadro são representadas de maneira quase fotográfica, como se o pintor flagrasse um instantâneo. Elas estão absortas em suas tarefas; não olham para frente; demonstram cansaço e rotina e, misturam-se com a matéria prima.
A cena retratada é prosaica, reflete sobre a exploração da mão de obra e como o trabalho desgasta as pessoas.
Por volta de 1860-1870, o realismo de Courbet foi se distanciando e deu lugar a uma pintura de formas voluptuosas e conteúdo erótico, de figuras femininas no estilo de Ingres, mas mais descarnadas.

"Indolência e Sensualidade", ou "Mulheres Dormindo" (1866).
 
"Mulher Entre as Ondas", 1867.


Na obra “Mulher entre as ondas” via-se uma camponesa robusta que emergia nua de um lago. A polêmica estaria no fato da jovem ser uma figura popular, suada, retirada da realidade e sem o menor vestígio de embelezamento idealizante. Uma visão diferenciada dos padrões de pintura erótica da época, onde se retratava musas encobertas por um véu de exotismo. A mulher entre as ondas não era uma escrava romana, nem uma dançarina árabe e muito menos uma ninfa grega. Este é justamente o ponto central da polêmica em torno da obra de Courbet. Sua adesão a um realismo brutal, disposto a não fazer concessões ao retrato fiel da realidade escandalizou a burguesia de sua época e causou horror entre o público acostumado aos padrões estéticos românticos.
É nesta mesma época que realiza a polêmica obra “A Origem do Mundo”, pintura executada a pedido de um diplomata turco que colecionava imagens eróticas. O quadro ao representar frontalmente as coxas e o sexo de uma mulher abalou profundamente o meio artístico da época.
O quadro foi pendurado no apartamento dele em Paris, escondido atrás de uma cortina para não constranger seus convidados. A pintura, apesar de ter sido vista por poucas pessoas, se tornou um dos quadros mais célebres do século XIX devido ao seu escandaloso tema central, sem precedentes na história da arte, tendo uma vulva no centro da composição, e desprezando-se completamente qualquer outro elemento no quadro.
“A Origem do Mundo” foi então comprada por um antiquário, passando de mão em mão até ao seu último dono, o célebre psicanalista francês Jacques Lacan. Após a sua morte, a família doou-o ao Museu d'Orsay, onde se encontra presentemente.
O quadro causa constrangimento ao observador, pois à época do academicismo, o nu era retratado de forma indireta, idealizada ou mistificada.
Courbet, dessa forma, desafia o conservadorismo artístico e liberta a arte à modernidade.
Courbet durante muito tempo acreditou que o realismo fosse o ponto final do desenvolvimento das artes. Acreditava não haver mais terreno para os pintores alegóricos de passagens bíblicas, mitológicas, ou históricas, pois para ele, o único tema possível na arte era o retrato fiel das pessoas anônimas, objetos vulgares, e cenas cotidianas da vida. Assim como seus colegas, negou o lugar da imaginação na arte, afirmando que “um artista só é capaz de reproduzir o que puder ver e apalpar, e deve tentar fazê-lo tão simples e objetivamente quanto possível”. Apesar de suas convicções no realismo, na fase final de sua carreira, ele irá perceber, assim como seus sucessores, sobretudo Monet e Cezanne, que a realidade não se encerrava simplesmente em seus preceitos realistas, e irá começar a explorar a natureza da percepção, o efêmero, a passagem de tempo, e a maneira como representar essa impressão visual pictoricamente. Esses experimentos da trajetória final de sua carreira garantiram seu lugar como um dos principais precursores do impressionismo.

"Penhascos em Etretat", 1870.


Courbet morre no exílio, vítima de cirrose hepática, em dezembro de 1877. Pouco antes de sua morte, o pintor havia escrito em carta para um amigo:

“Só espero realizar um milagre: viver toda minha vida para minha arte, sem me afastar de meus princípios, sem ter por um só instante mentido à minha consciência, e sem ter nunca executado um palmo de pintura para agradar a alguém ou para vender”.











Um comentário:

Luana disse...

Courbet nos mostrou que a pintura poderia sim se ocupar de temas prosaicos, e que a beleza está ao nosso redor, ao alcance dos artistas. Belo post.