sexta-feira, 21 de novembro de 2025

ANTÔNIO CARLOS FERREIRA DE BRITO, O CACASO

 Poesia rápida como a vida. Antônio Carlos Ferreira de Brito, o Cacaso, nasceu em Uberaba – MG, no dia 13 de março de 1944, e faleceu em 1987, no dia 27 de dezembro, no Rio de Janeiro. Antes dos 20 anos veio a poesia, através de letras de sambas que colocava em músicas de amigos como Elton Medeiros e Maurício Tapajós. Sua obra não só revelou uma das mais combativas e criativas vozes dos anos de chumbo, como deu visibilidade e respeitabilidade ao fenômeno da Poesia Marginal, em que militavam, direta ou indiretamente, amigos como Francisco Alvim, Torquato Neto, Wally Salomão, Ana Cristina Cezar, Charles, Chacal.

Atuou como crítico literário em jornais e revistas. Compôs letras de MPB em parcerias bem-sucedidas e tornou-se um pilar da chamada poesia marginal brasileira. Suas principais obras poéticas são A Palavra cerzida (1967), Grupo escolar (1974), Beijo na boca (1975), Segunda classe (1975), Na corda bamba (1978) e Mar de mineiro (1982). 

CARACTERÍSTICAS:

Por maiores que se mostrassem as diferenças entre os poetas marginais e grupos emergentes, Cacaso estava com a razão: o poema era único” (Hollanda 1980). É explícita a intenção estética à maneira de Oswald de Andrade, usuário do humor como atitude poética, cultivador emérito do poema-piada, construída por meio de um exercício poético que incorpora as tensões políticas e estéticas à sua própria linguagem ao invés de apenas referi-las. Optando por uma linguagem de essencialidades, Cacaso tende, sobretudo nos poemas curtos, à fusão bem balanceada de imagem, tom e emoção para iluminar instantaneamente os impasses de sua geração.

 

HÁ UMA GOTA DE SANGUE NO CARTÃO POSTAL

 

eu sou manhoso eu sou brasileiro
finjo que vou mas não vou minha janela é
a moldura do luar do sertão
a verde mata nos olhos verdes da mulata

sou brasileiro e manhoso por isso dentro
da noite e de meu quarto fico cismando
[na beira de um rio
na imensa solidão de latidos e araras
lívido de medo e de amor

 

O FAZENDEIRO DO MAR

Mar de mineiro é garoa
Mar de mineiro é baião
Mar de mineiro é lagoa
Mar de mineiro é balão
Mar de mineiro é não

Mar de mineiro é viagem
Mar de mineiro é arte
Mar de mineiro é margem
Mar de mineiro é parte
Mar de mineiro é Marte

Mineiro tem mar de menos
Mineiro tem mar demais
Mineiro tem mar de Vénus
Mineiro tem cais
Mineiro tem mar de paz

Mar de mineiro é tudo
Mar de mineiro é fase
Mar de mineiro é mudo
Mar de mineiro é quase
Mar de mineiro é frase

Mineiro tem mar de cio
Mineiro tem mar de fonte
Mineiro tem mar de rio
Mineiro tem mar de monte
Mar de mineiro é horizonte

Mar de mineiro é Gerais
Mar de mineiro é Campinas
Mar de mineiro é Goiás
Mar de mineiro é Colinas
Mar de mineiro é Minas

LAR DOCE LAR

p/ Maurício Maestro

Minha pátria é minha infância:
Por isso vivo no exílio.

Há oposição sucinta entre um passado protegido, figurado em terna e crédula infância, e um presente desvalido, simultaneamente construído e descontruído pela ambivalência do último verso.

CINEMA MUDO

Neste retrato de noivado divulgamos
os nossos corpos solteiros.
Na hierarquia dos sexos, transparente,
escorrego para o passado.
Na falta de quem nos olhe
vamos ficando perfeitos e belos
tão belos e tão perfeitos
como a tarde quando pressente
as glândulas aéreas da noite.

Na contramão do experimentalismo erudito das vanguardas imediatamente anteriores, Cacaso investe alto no recurso da aproximação confessional e no desejo de junção entre vida e arte.

LOGIAS E ANALOGIAS

No Brasil a medicina vai bem
mas o doente ainda vai mal.
Qual o segredo profundo
desta ciência original?
É banal: certamente
não é o paciente
que acumula capital.

As aparências revelam
Reflexo condicionado

Imantado por uma irreverência bastante próxima da fala cotidiana, tece versos em que estética e ética se fundem contra ditaduras de todos os matizes, inclusive artísticos

JOGOS FLORAIS I

Minha terra tem palmeiras
onde canta o tico-tico.
Enquanto isso o sabiá
vive comendo o meu fubá.

Ficou moderno o Brasil
ficou moderno o milagre:
a água já não vira vinho,
vira direto vinagre.

JOGOS FLORAIS II

Minha terra tem Palmares
memória cala-te já.
Peço licença poética
Belém capital Pará.

Bem, meus prezados senhores
dado o avançado da hora
errata e efeitos do vinho
o poeta sai de fininho.

(será mesmo com 2 esses
que se escreve paçarinho?)

Embora tenha alguma validade a ressalva de que a reaparição contínua gasta a graça da piada, o deleite estético e ironia pulsante das releituras de Cacaso se impõem em “Jogos Florais” (Grupo escolar):

Amalgamando a romântica “Canção do exílio” de Gonçalves Dias com o chorinho “Tico-tico no fubá”, de Zequinha de Abreu, o eu-lírico abre alas para o ceticismo irônico quanto ao progresso alardeado pelo regime militar e seu milagre econômico acrimonioso, porque intensificador da concentração de renda e, ato contínuo, da pobreza brasileira. “Jogos Florais” deixa ver seu criador como produto da comunhão de diversas forças – o nacionalismo romântico de Gonçalves Dias e Casimiro de Abreu, a herança iconoclasta de Oswald de Andrade, Carlos Drummond e Murilo Mendes. Na segunda parte do poema, ressoa a frustração dos idealismos decorrente do bloqueio da participação política e dos interditos do passado e do presente.  Ao cabo, o jogo paródico abriga simultaneamente a sátira político-social (milagre malogrado, histórico de escravidão e repressão) e a confraternização literária e musical (poesia do exílio e chorinho). A linguagem do poema aproxima-se da fonte nacional-popular, sobretudo no irreverente dilema ortográfico em versos parentéticos, compatível apenas com uma poesia que dispensa solenemente a gravata. O mosaico intertextual de “Jogos Florais” intensifica os valores semânticos, afetivos e fonético-musicais, criando um vibrante consórcio entre as palavras dos versos, que, todavia, enunciam um eu-lírico exilado em sua própria terra.

 

 

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