Poesia rápida como a vida. Antônio Carlos Ferreira de Brito, o Cacaso, nasceu em Uberaba – MG, no dia 13 de março de 1944, e faleceu em 1987, no dia 27 de dezembro, no Rio de Janeiro. Antes dos 20 anos veio a poesia, através de letras de sambas que colocava em músicas de amigos como Elton Medeiros e Maurício Tapajós. Sua obra não só revelou uma das mais combativas e criativas vozes dos anos de chumbo, como deu visibilidade e respeitabilidade ao fenômeno da Poesia Marginal, em que militavam, direta ou indiretamente, amigos como Francisco Alvim, Torquato Neto, Wally Salomão, Ana Cristina Cezar, Charles, Chacal.
Atuou como crítico literário em jornais e
revistas. Compôs letras de MPB em parcerias bem-sucedidas e tornou-se um pilar
da chamada poesia marginal brasileira. Suas principais obras poéticas são A Palavra cerzida (1967), Grupo escolar (1974), Beijo na boca (1975), Segunda classe (1975), Na corda bamba (1978) e Mar de mineiro (1982).
CARACTERÍSTICAS:
Por maiores que se mostrassem as
diferenças entre os poetas marginais e grupos emergentes, Cacaso estava com a
razão: o poema era único” (Hollanda 1980). É explícita a intenção estética à
maneira de Oswald de Andrade, usuário do humor como atitude poética, cultivador
emérito do poema-piada, construída por meio de um exercício poético que
incorpora as tensões políticas e estéticas à sua própria linguagem ao invés de
apenas referi-las. Optando por uma linguagem de essencialidades, Cacaso tende,
sobretudo nos poemas curtos, à fusão bem balanceada de imagem, tom e emoção
para iluminar instantaneamente os impasses de sua geração.
HÁ
UMA GOTA DE SANGUE NO CARTÃO POSTAL
eu
sou manhoso eu sou brasileiro
finjo que vou mas não vou minha janela é
a moldura do luar do sertão
a verde mata nos olhos verdes da mulata
sou
brasileiro e manhoso por isso dentro
da noite e de meu quarto fico cismando
[na beira de um rio
na imensa solidão de latidos e araras
lívido de medo e de amor
O FAZENDEIRO
DO MAR
Mar
de mineiro é garoa
Mar de mineiro é baião
Mar de mineiro é lagoa
Mar de mineiro é balão
Mar de mineiro é não
Mar
de mineiro é viagem
Mar de mineiro é arte
Mar de mineiro é margem
Mar de mineiro é parte
Mar de mineiro é Marte
Mineiro
tem mar de menos
Mineiro tem mar demais
Mineiro tem mar de Vénus
Mineiro tem cais
Mineiro tem mar de paz
Mar
de mineiro é tudo
Mar de mineiro é fase
Mar de mineiro é mudo
Mar de mineiro é quase
Mar de mineiro é frase
Mineiro
tem mar de cio
Mineiro tem mar de fonte
Mineiro tem mar de rio
Mineiro tem mar de monte
Mar de mineiro é horizonte
Mar
de mineiro é Gerais
Mar de mineiro é Campinas
Mar de mineiro é Goiás
Mar de mineiro é Colinas
Mar de mineiro é Minas
LAR
DOCE LAR
p/ Maurício Maestro
Minha
pátria é minha infância:
Por isso vivo no exílio.
Há oposição sucinta entre um passado
protegido, figurado em terna e crédula infância, e um presente desvalido,
simultaneamente construído e descontruído pela ambivalência do último verso.
CINEMA
MUDO
Neste
retrato de noivado divulgamos
os nossos corpos solteiros.
Na hierarquia dos sexos, transparente,
escorrego para o passado.
Na falta de quem nos olhe
vamos ficando perfeitos e belos
tão belos e tão perfeitos
como a tarde quando pressente
as glândulas aéreas da noite.
Na contramão do experimentalismo erudito
das vanguardas imediatamente anteriores, Cacaso investe alto no recurso da
aproximação confessional e no desejo de junção entre vida e arte.
LOGIAS
E ANALOGIAS
No
Brasil a medicina vai bem
mas o doente ainda vai mal.
Qual o segredo profundo
desta ciência original?
É banal: certamente
não é o paciente
que acumula capital.
As
aparências revelam
Reflexo condicionado
Imantado por uma irreverência bastante
próxima da fala cotidiana, tece versos em que estética e ética se fundem contra
ditaduras de todos os matizes, inclusive artísticos
JOGOS
FLORAIS I
Minha
terra tem palmeiras
onde canta o tico-tico.
Enquanto isso o sabiá
vive comendo o meu fubá.
Ficou
moderno o Brasil
ficou moderno o milagre:
a água já não vira vinho,
vira direto vinagre.
JOGOS
FLORAIS II
Minha
terra tem Palmares
memória cala-te já.
Peço licença poética
Belém capital Pará.
Bem,
meus prezados senhores
dado o avançado da hora
errata e efeitos do vinho
o poeta sai de fininho.
(será
mesmo com 2 esses
que se escreve paçarinho?)
Embora tenha alguma validade a ressalva
de que a reaparição contínua gasta a graça da piada, o deleite estético e
ironia pulsante das releituras de Cacaso se impõem em “Jogos Florais” (Grupo
escolar):
Amalgamando a romântica “Canção do
exílio” de Gonçalves Dias com o chorinho “Tico-tico no fubá”, de Zequinha de
Abreu, o eu-lírico abre alas para o ceticismo irônico quanto ao progresso
alardeado pelo regime militar e seu milagre econômico acrimonioso, porque
intensificador da concentração de renda e, ato contínuo, da pobreza brasileira.
“Jogos Florais” deixa ver seu criador como produto da comunhão de diversas
forças – o nacionalismo romântico de Gonçalves Dias e Casimiro de Abreu, a
herança iconoclasta de Oswald de Andrade, Carlos Drummond e Murilo Mendes. Na
segunda parte do poema, ressoa a frustração dos idealismos decorrente do
bloqueio da participação política e dos interditos do passado e do presente. Ao cabo, o jogo paródico abriga
simultaneamente a sátira político-social (milagre malogrado, histórico de
escravidão e repressão) e a confraternização literária e musical (poesia do
exílio e chorinho). A linguagem do poema aproxima-se da fonte nacional-popular,
sobretudo no irreverente dilema ortográfico em versos parentéticos, compatível
apenas com uma poesia que dispensa solenemente a gravata. O mosaico
intertextual de “Jogos Florais” intensifica os valores semânticos, afetivos e
fonético-musicais, criando um vibrante consórcio entre as palavras dos versos,
que, todavia, enunciam um eu-lírico exilado em sua própria terra.
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