quarta-feira, 16 de julho de 2025

Conto: "O caso da vara", Machado de Assis

 

“Damião fugiu do seminário às onze horas da manhã de uma sexta-feira de agosto. Não sei bem o ano; foi antes de 1850. Passados alguns minutos, parou vexado; não contava com o efeito que produzia nos olhos da outra gente aquele seminarista que ia espantado, medroso, fugitivo. Desconhecia as ruas, andava e desandava; finalmente, parou. Para onde iria? Para casa, não; lá estava o pai que o devolveria ao seminário, depois de um bom castigo. Não assentara no ponto de refúgio, porque a saída estava determinada para mais tarde; uma circunstância fortuita a apressou. Para onde iria? Lembrou-se do padrinho, João Carneiro, mas o padrinho era um moleirão sem vontade, que por si só não faria cousa útil. Foi ele que o levou ao seminário e o apresentou ao reitor:

– Trago-lhe o grande homem que há de ser, disse ele ao reitor.
– Venha, acudiu este, venha o grande homem, contanto que seja também humilde e bom. A verdadeira grandeza é chã. Moço…
Tal foi a entrada. Pouco tempo depois fugiu o rapaz ao seminário. Aqui o vemos agora na rua, espantado, incerto, sem atinar com refúgio nem conselho; percorreu de memória as casas de parentes e amigos, sem se fixar em nenhuma. De repente, exclamou:
– Vou pegar-me com Sinhá Rita! Ela manda chamar meu padrinho, diz-lhe que quer que eu saia do seminário… Talvez assim…
Sinhá Rita era uma viúva, querida de João Carneiro; Damião tinha umas idéias vagas dessa situação e tratou de a aproveitar, Onde morava? Estafa tão atordoado, que só daí a alguns minutos é que lhe acudiu a casa; era no Largo do Capim.
– Santo nome de Jesus! Que é isto? bradou Sinhá Rita, sentando-se na marquesa, onde estafa reclinada.
Damião acabava de entrar espavorido; no momento de chegar a casa, vira passar um padre, e deu um empurrão à porta, que por fortuna não estava fechada a chave nem ferrolho. Depois de entrar, espiou pela rótula, a ver o padre. Este não deu por ele e ia andando.
– Mas que é isto, Sr. Damião? bradou novamente a dona da casa, que só agora o conhecera. Que vem fazer aqui?
Damião, trêmulo, mal podendo falar, disse que não tivesse medo, não era nada; ia explicar tudo.
– Descanse, e explique-se.
– Já lhe digo; não pratiquei nenhum crime, isso juro; mas espere.
Sinhá Rita olhava para ele espantada, e todas as crias, de casa, e de fora, que estavam sentadas em volta da sala, diante das suas almofadas de renda, todas fizeram parar os bilros e as mãos. Sinhá Rita vivia principalmente de ensinar a fazer renda, crivo e bordado. Enquanto o rapaz tomava fôlego, ordenou às pequenas que trabalhassem, e esperou. Afinal, Damião contou tudo, o desgosto que lhe dava o seminário; estava certo de que não podia ser bom padre; falou com paixão, pediu-lhe que o salvasse.
– Como assim? Não posso nada.
– Pode, querendo.
– Não, replicou ela abanando a cabeça; não me meto em negócios de sua família, que mal conheço; e então seu pai, que dizem que é zangado!
Damião viu-se perdido. Ajoelhou-se-lhe aos pés, beijou-lhe as mãos, desesperado.
– Pode muito, Sinhá Rita; peço-lhe pelo amor de Deus, pelo que a senhora tiver de mais sagrado, por alma de seu marido, salve-me da morte, porque eu mato-me, se voltar para aquela casa.
Sinhá Rita, lisonjeada com as súplicas do moço, tentou chamá-lo a outros sentimentos. A vida de padre era santa e bonita, disse-lhe ela; o tempo lhe mostraria que era melhor vencer as repugnâncias e um dia…”Não, nada, nunca!” redarguia Damião, abanando a cabeça e beijando-lhe as mãos; e repetia que era a sua morte.
Sinhá Rita hesitou ainda muito tempo; afinal perguntou-lhe por que não ia ter com o padrinho.
– Meu padrinho? Esse é ainda pior que papai; não me atende, duvido que atenda a ninguém…
– Não atende? interrompeu Sinhá Rita ferida em seus brios. Ora, eu lhe mostro se atende ou não…
Chamou um moleque e bradou-lhe que fosse à casa do Sr. João Carneiro chamá-lo, já e já; e se não estivesse em casa, perguntasse onde podia ser encontrado, e corresse a dizer-lhe que precisava muito de lhe falar imediatamente.
– Anda, moleque.
Damião suspirou alto e triste. Ela, para mascarar a autoridade com que dera aquelas ordens, explicou ao moço que o Sr. João Carneiro fora amigo do marido e arranjara-lhe algumas crias para ensinar. Depois, como ele continuasse triste, encostado a um portal, puxou-lhe o nariz, rindo:
– Ande lá, seu padreco, descanse que tudo se há de arranjar…
Sinhá Rita tinha quarenta anos na certidão de batismo, e vinte e sete nos olhos. Era apessoada, viva, patusca, amiga de rir; mas, quando convinha, brava como o diabo. Quis alegrar o rapaz, e, apesar da situação, não lhe custou muito. Dentro de pouco, ambos eles riam, ela contava-lhe anedotas, e pedia-lhe outras, que ele referia com singular graça. Uma destas, estúrdia, obrigada a trejeitos, fez rir a uma das crias de Sinhá Rita, que esquecera o trabalho, para mirar e escutar o moço. Sinhá Rita pegou de uma vara que estava ao pé da marquesa, e ameaçou-a:
– Lucrécia, olha a vara!


A pequena abaixou a cabeça, aparando o golpe, mas o golpe não veio. Era uma advertência; se à noitinha a tarefa não estivesse pronta, Lucrécia receberia o castigo do costume. Damião olhou para a pequena; era uma negrinha, magricela, um frangalho de nada, com uma cicatriz na testa e uma queimadura na mão esquerda. Contava onze anos. Damião reparou que tossia, mas para dentro, surdamente, a fim de não interromper a conversação. Teve pena da negrinha, e resolveu apadrinhá-la, se não acabasse a tarefa. Sinhá Rita não lhe negaria o perdão… Demais, ela rira por achar-lhe graça; a culpa era sua, se há culpa em ter chiste.
Nisto, chegou o João Carneiro. Empalideceu quando viu ali o afilhado, e olhou para Sinhá Rita, que não gastou tempo com preâmbulos. Disse-lhe que era preciso tirar o moço do seminário, que ele não tinha vocação para a vida eclesiástica, e antes um padre de menos que um padre ruim. Cá fora também se podia amar e servir a Nosso Senhor. João Carneiro, assombrado, não achou que replicar durante os primeiros minutos; afinal, abriu a boca e repreendeu o afilhado por ter vindo incomodar “pessoas estranhas”, e em seguida afirmou que o castigaria.
– Qual castigar, qual nada! Interrompeu Sinhá Rita. Castigar por quê? Vá, vá falar a seu compadre.
– Não afianço nada, não creio que seja possível…
– Há de ser possível, afianço eu. Se o senhor quiser, continuou ela com certo tom insinuativo, tudo se há de arranjar. Peça-lhe muito, que ele cede. Ande, senhor João Carneiro, seu afilhado não volta para o seminário; digo-lhe que não volta…
– Mas, minha senhora…
– Vá, vá.
João Carneiro não se animava a sair, nem podia ficar. Estava entre um puxar de forças opostas. Não lhe importava, em suma, que o rapaz a abasse clérigo, advogado ou médico, ou outra qualquer cousa, vadio que fosse; mas o pior é que lhe cometiam uma luta ingente com os sentimentos mais íntimos do compadre, sem certeza do resultado; e, se este fosse negativo, outra luta com Sinhá Rita, cuja última palavra era ameaçadora: “digo-lhe que ele não volta”. Tinha de haver por força um escândalo. João Carneiro estava com a pupila desvairada, a pálpebra trêmula, o peito ofegante. Os olhares que deitavam a Sinhá Rita eram de súplica, mesclados de um tênue raio de censura. Por que lhe não pedia outra cousa? Por que lhe não ordenava que fosse a pé, debaixo de chuva, à Tijuca, ou Jacarepaguá? Mas logo persuadir ao compadre que mudasse a carreira do filho… Conhecia o velho; era capaz de lhe quebrar uma jarra na cara. Ah! Se o rapaz caísse ali, de repente, apoplético, morto! Era uma solução, — cruel é certo, mas definitiva.
– Então? insistiu Sinhá Rita.
Ele fez-lhe um gesto de mão que esperasse. Coçava a barba, procurando um recurso. Deus do céu! Um decreto do Papa dissolvendo a Igreja, ou, pelo menos, extinguindo os seminários, faria acabar tudo em bem. João Carneiro voltaria para casa e ia jogar os três-setes. Imaginai que o barbeiro de Napoleão era encarregado de comandar a batalha de Austerlitz… Mas a Igreja continuava, os seminários continuavam, o afilhado continuava, cosido à parede, olhos baixos, esperando, sem solução apoplética.
– Vá, vá, disse Sinhá Rita dando-lhe o chapéu e a bengala.
Não teve remédio. O barbeiro meteu a navalha no estojo, travou da espada e saiu à campanha. Damião respirou; exteriormente deixou-se estar na mesma, olhos fincados no chão, acabrunhado. Sinhá Rita puxou-lhe desta vez o queixo.
– Ande jantar, deixe-se de melancolias.
– A senhora crê que ele alcance alguma cousa?
– Há de alcançar tudo, redargüiu Sinhá Rita cheia de si. Ande, que a sopa está esfriando.
Apesar do gênio galhofeiro de Sinhá Rita, e do seu próprio espírito leve, Damião esteve menos alegre ao jantar que na primeira arte do dia. Não fiava do caráter mole do padrinho. Contudo, jantou bem; e, para o fim, voltou às pilhérias da manhã. À sobremesa, ouviu um rumor de gente na sala, e perguntou se o vinham prender.
– Hão de ser as moças.
Levantaram-se e passaram à sala. As moças eram cinco vizinhas que iam todas as tardes tomar café com Sinhá Rita, e ali ficavam até o cair da noite.
As discípulas, findo o jantar delas, tornaram às almofadas do trabalho. Sinhá Rita presidia a todo esse mulherio de casa e de fora. O sussurro dos bilros e o palavrear das moças eram ecos tão mundanos, tão alheios à Teologia e ao Latim, que o rapaz deixou-se ir por eles e esqueceu o resto. Durante os primeiros minutos, ainda houve da parte das vizinhas certo acanhamento; mas passou depressa. Uma delas cantou uma modinha, ao som da guitarra, tangida por Sinhá Rita, e a tarde foi passando depressa. Antes do fim, Sinhá Rita pediu a Damião que contasse certa anedota que lhe agradara muito. Era a tal que fizera rir Lucrécia.
– Ande, senhor Damião, não se faça de rogado, que as mocas querem ir embora. Vocês vão gostar muito.
Damião não teve remédio senão obedecer. Malgrado o anúncio e a expectação, que serviam a diminuir o chiste e o feito, a anedota acabou entre risadas das moças. Damião, contente de si, não esqueceu Lucrécia e olhou para ela, a ver se rira também. Viu-a com a cabeça metida na almofada para acabar a tarefa. Não ria; ou teria rido para dentro, como tossia.
Saíram as vizinhas, e a tarde caiu de todo. A alma de Damião foi-se fazendo tenebrosa, antes da noite. Que estaria acontecendo? De instante a instante, ia espiar pela rótula, e voltava cada vez mais desanimado. Nem sombra do padrinho. Com certeza, o pai fê-lo calar, mandou chamar dois negros, foi à polícia pedir um pedestre e aí vinha pegá-lo à força e levá-lo ao seminário. Damião perguntou a Sinhá Rita se a casa não teria saída pelos fundos; correu ao quintal, e calculou que podia saltar o muro. Quis ainda saber se haveria modo de fugir para a Rua da Vala, ou se era melhor falar a algum vizinho que fizesse o favor de o receber. O pior era a batina; se Sinhá Rita lhe pudesse arranjar um rodaque, uma sobrecasaca velha… Sinhá Rita dispunha justamente de um rodaque, lembrança ou esquecimento de João Carneiro.
– Tenho um rodaque do meu defunto, disse ela, rindo; mas para que está com esses sustos? Tudo se há de arranjar, descanse.
Afinal, à boca da noite, apareceu um escravo do padrinho, com uma carta para Sinhá Rita. O negócio ainda não estava composto; o pai ficou furioso e quis quebrar tudo; bradou que não, senhor, que o peralta havia de ir para o seminário, ou então metia-o no Aljube ou na presiganga. João Carneiro lutou muito para conseguir que o compadre não resolvesse logo, que dormisse a noite, e meditasse bem se era conveniente dar à religião um sujeito tão rebelde e vicioso. Explicava na carta que falou assim para melhor ganhar a causa. Não a tinha por ganha; mas no dia seguinte lá iria ver o homem, e teimar de novo. Concluiu dizendo que o moço fosse para a casa dele.
Damião acabou de ler a carta e olhou para Sinhá Rita. “Não tenho outra tábua de salvação”, pensou ele. Sinhá Rita mandou vir um tinteiro de chifre, e na meia folha da própria carta escreveu esta resposta: “Joãozinho, ou você salva o moço, ou nunca mais nos vemos”. Fechou a carta com obreia, e deu-a ao escravo, para que a levasse depressa. Voltou a reanimar o seminarista, que estava outra vez no capaz da humildade e da consternação. Disse-lhe que sossegasse, que aquele negócio era agora dela.
– Hão de ver para quanto presto! Não, que eu não sou de brincadeiras!
Era a hora de recolher os trabalhos. Sinhá Rita examinou-os; todas as discípulas tinham concluído a tarefa. Só Lucrécia estava ainda à almofada, meneando os bilros, já sem ver; Sinhá Rita chegou-se a ela, viu que a tarefa não estava acabada, ficou furiosa, e agarrou-a por uma orelha.
—Ah! malandra!
– Nhanhã, nhanhã! Pelo amor de Deus! Por Nossa Senhora que está no céu.
– Malandra! Nossa Senhora não protege vadias!
Lucrécia fez um esforço, soltou-se das mãos da senhora, e fugiu para dentro; a senhora foi atrás e agarrou-a
– Ande cá!
– Minha senhora, me perdoe! tossia a negrinha.
– Não perdôo, não. Onde está a vara?
E tornaram ambas à sala, uma presa pela orelha, debatendo-se, chorando e pedindo; a outra dizendo que não, que a havia de castigar.
– Onde está a vara?
A vara estava à cabeceira da marquesa, do outro lado da sala; Sinhá Rita, não querendo soltar a pequena, bradou ao seminarista:
– Sr. Damião, dê-me aquela vara, faz favor?
Damião ficou frio… Cruel instante! Uma nuvem passou-lhe pelos olhos. Sim, tinha jurado apadrinhar a pequena, que por causa dele, atrasara o trabalho…
– Dê-me a vara, Sr. Damião!
Damião chegou a caminhar na direção da marquesa. A negrinha pediu-lhe então por tudo o que houvesse de mais sagrado, pela mãe, pelo pai, por Nosso Senhor…
– Me acuda, meu sinhô moço!
Sinhá Rita, com a cara em fogo e os olhos esbugalhados, instava pela vara, sem largar a negrinha, agora presa de um acesso de tosse. Damião sentiu-se compungido; mas ele precisava tanto sair do seminário! Chegou à marquesa, pegou na vara e entregou a Sinhá Rita. “

Vocabulário:
Três-setes: espécie de jogo de vazas;
pedestre: soldado de polícia munido de chibata, no Rio antigo;
aljube: cárcere escuro, para padres;
presiganga, navio-prisão, ou que recolhia presos;
rodaque, antigo casaco masculino.

II – FOCO NARRATIVO:

Trata-se de um narrador em terceira pessoa onisciente e onipresente, haja vista que conhece tudo sobre a história, e que, além disso, está presente em todos os lugares da mesma.

III – TEMPO:

A narrativa se passa no século XIX, no período imperial brasileiro, Segundo Reinado, em 1850. Os fatos que permeiam o enredo são narrados cronologicamente.
Machado de Assis captou seu tempo e projetou nos textos que escreveu sua percepção sobre a sociedade brasileira da época e seus múltiplos aspectos – economia, política, cultura, dentre outros. Nas tensões vividas em seus contos e romances, Machado retrata a realidade da sociedade brasileira e as mudanças por que o Brasil vinha passando misturando elementos ficcionais e historiografia.
Entretanto, a personagem Damião ao recordar-se de seu ingressou no seminário, realiza uma digressão de caráter memorialista, mesclando o tempo psicológico.

III – ANÁLISE CRÍTICA LITERÁRIA:

O conto machadiano “O caso da vara” ultrapassa a temática da escravidão, pois revela grande preocupação pela análise de caracteres e pela dissecação da alma humana.
Machado de Assis não se limita a um contexto histórico social brasileiro, apesar de denunciar a exploração desumana e injustiça, presentes na escravidão que permeava a sociedade da época. O autor analisa psicologicamente o indivíduo e, de maneira universal, explana a falta de ética, moral e de princípios da classe social vigente perante os interesses próprios.
Machado desnuda as mazelas da existência humana e expõe a escassez, a crueldade, a ganância, o autoritarismo e a opressão do indivíduo, apresentando-o com um ser incompleto que se utiliza de outro para se favorecer.
Neste conto, Machado enfoca o drama particular de Damião, que deseja abandonar o seminário. Para conseguir seu objetivo, Damião utiliza-se da sua influência. A partir daí, o conto apresenta um vasto painel de interesses, poderes e favores.
Damião consciente do seu limite mediante a enérgica decisão de seu padrinho João Carneiro e, conhecendo o prestígio que Sinhá Rita exerce sobre o mesmo, pede que ela interceda por ele junto ao padrinho e, por este, ao pai.
É importante ressaltar que Sinhá Rita só atendeu ao seu pedido para demonstrar sua força e porque, sentiu-se “lisonjeada com as súplicas” de Damião.
No entanto, esse jogo de interesses acaba por envolver Lucrécia, uma negrinha magricela de onze anos aparentes, que servia Sinhá Rita e que por curiosidade havia deixado seus afazeres domésticos para ouvir as anedotas de Damião.
Sinhá Rita percebendo a distração da menina, ameaça-a com a vara caso não cumprisse suas obrigações.
O fato desperta compaixão em Damião que decide, caso necessário, proteger a criada.
Sinhá Rita, por sua vez, envia um bilhete impositor favorável a Damião.
À noite, Sinhá Rita certifica-se que Lucrécia não havia terminado seus trabalhos. De maneira rígida pede que Damião lhe alcance a vara, o símbolo de autoritarismo e punição. O protagonista dividido entre a sua solidariedade com a menina e a sua liberdade do seminário, revê seus conceitos e decide proteger a si mesmo e, apesar de presenciar as súplicas de Lucrécia, entrega a vara a Sinhá Rita.
“O caso da vara” denuncia a mesquinhez do ser humano e os interesses pessoais e, revela como esses vícios habitam o cotidiano das relações humanas desestruturando a personalidade daqueles que buscam autoconservação.

 


segunda-feira, 30 de junho de 2025

“INVENTÁRIO DE IMÓVEIS E JACENTES”, EM “NÓS MATAMOS O CÃO TINHOSO”, 1964, LUÍS BERNARDO HONWANA


“Nós Matamos o Cão Tinhoso” é a única prosa publicada em Moçambique, no período colonial, referenciada como marco histórico e testemunhal, como também um manifesto, pois representa a luta do colonizado moçambicano e a coletividade da qual ele participa e pela qual ele fala.

A partir da edição de 1980, é composto por sete contos: “Nós Matamos o Cão Tinhoso”, “Inventário de Imóveis e Jacentes”, “Dina”, “A Velhota”, “Papá, Cobra e Eu”, “As Mãos dos Pretos” e “Nhinguitimo”.

Na publicação brasileira realizada pela Editora Kapulana em 2017, há também um conto do autor nunca antes publicado em livro, “Rosita, até morrer”.

De acordo com Honwana, alguns dos contos presentes no “Nós Matamos o Cão Tinhoso” foram divulgados, antes de 1964, em periódicos:

“Os contos que compõem o “Nós Matámos o Cão Tinhoso” foram escritos entre 1961 e 1963 e o livro foi publicado antes da minha prisão (que ocorreu em dezembro de 1964).

O conto "Inventário de Imóveis e Jacentes" foi o primeiro a ser publicado na imprensa moçambicana (Suplemento literário de A Tribuna).

“INVENTÁRIO DE IMÓVEIS E JACENTES”: típica família moçambicana e sua residência.

Narrativa, ainda que simples, permite o levantamento de importantes questões, pois “faz com que o leitor entre no território do não dito, daquilo que o conto não relata, da verdadeira situação que não está a ser contada”.

Em “Inventário de Imóveis e Jacentes”, através de uma descrição quase mórbida, Ginho apresenta o inventário da pobreza que acomete sua família – parte da população indígena. Num desenho, quase que minucioso, do seu contexto familiar, o garoto vai entregando-nos pistas, que nos ajuda a pensar as mentes dos colonizados, frente a essa realidade imposta pelo sistema colonial.

Essas pistas nos permitem ver, também, que, tanto ele quanto o seu pai, mesmo inseridos na realidade familiar, que é de estágio letárgico, possuem um posicionamento diferente.

Não obstante, descobrimos que o pai do narrador já foi presidiário e que está doente. Prisão de colonizado, em período colonial, só nos leva a pensar em envolvimento com as forças estruturantes da descolonização.

Ginho expõe os cômodos da casa, os móveis, a alimentação, como são servidas as refeições, tudo de forma bastante simples.

   Além do quarto em que estamos e do outro em que está a Mamã, a nossa casa tem mais duas divisões: a sala de visitas e a sala de jantar. Esta última tem as paredes enegrecidas pelo fumo, porque dantes Mamã tinha ali o fogão, a um canto. É ocupada por uma mesa já despolida e sem estilo, rodeada por 7 cadeiras, uma de cada espécie, um armário em que alguém escreveu “Elvis”, e vários sacos no canto, atrás da porta. Às refeições, como não cabemos todos à mesa, a Gita e a Nelita sentam-se no chão, viradas uma para a outra [...] Ao meio fica o prato de alumínio [...] Invariavelmente o prato contém arroz e caril de amendoim [...]. (HONWANA, 1980, p.36-37).

Em uma de suas descrições do lar narra que existem livros que só interessam ao seu pai. As demais leituras eram de interesse, apenas, de sua mãe.

Nota-se que os livros ocupam um espaço de prestígio na casa a julgar pela cortina que os esconde:

Entre a porta que dá para a casa de banho e a que dá para este quarto, encostada à parede do Corredor, há uma estante com 5 prateleiras todas cheias de livros. Tem a cobri-la uma cortina feita dum pano idêntico ao do das cortinas da sala de visitas. As cortinas do quarto da Mamã são também do mesmo pano. Só neste quarto é que as cortinas são diferentes. São dum pano grosso e amarelado. A Tina diz que o pano é feio, mas quando o Papá esteve preso tirou 2 cortinas e com elas fez uma saia que não era parecida com nenhuma saia que eu me lembrasse ter visto. Eu acho que era feia. (HONWANA, 1980, p.38).

Enquanto Ginho faz o inventário, descrevendo a realidade da família, é possível perceber alguns sintomas que corroboram para a leitura do estado de “zumbi”.

A metáfora do zumbi vem a calhar com a situação pois, o zumbi é um homem “morto-vivo”, aquele “ao qual se retirou o espírito e a razão, deixando-lhe apenas a força para trabalhar”.

O estado de zumbi justifica-se diante da violência do poder colonial, mesmo não aceitando a colonização, o indígena percebe-se, momentaneamente, impotente, “como membro de uma comunidade sem história, sem sentido de Estado, sem valores éticos, sem economia, isto é, sem civilização”.

Além de inventariar a pobreza do lar, ele é o único que, como o pai, lê livros:

Debaixo desta cama está guardado o meu material de desenho e pintura, contido em dois caixotes de madeira. Há ainda mais três caixotes com livros. Debaixo da cama que está o Papá há mais caixotes com livros. As revistas estão distribuídas pelas 4 mesinhas de cabeceira dos dois quartos. As mais apresentáveis estão na sala de visitas, sobre a mesa de centro, sobre o aparador, sobre a máquina de costura e na mesinha do rádio. Se agora quisesse ler uma revista ia direitinho à mesa do centro, porque lá estão as “Lifes”, as “Times” e as “Cruzeiros” mais recentes. Na mesa do centro está também o “Reader’s”, mas talvez nem lhe tocasse porque parece que não é grande coisa. O Papá diz que é uma porcaria. Bem, mas para ele todas as revistas que a Mamã costuma pôr na sala de visitas são uma porcaria. É por isso que não tenho assim tanta vontade de sair da cama, embora não tenha sono nenhum. (HONWANA, 1980, p.38-39).

Nota-se que as revistas citadas pelo garoto, as de seu gosto, tratam-se de duas produções norte-americanas e uma brasileira. A que é de preferência de sua mãe é uma produção portuguesa. Ambas são rejeitadas pelo pai, o que pode figurar como uma recusa a tudo que se refere às potências colonizadoras – Inglaterra, Portugal.

Seu pai mantém as janelas fechadas levando-nos a ideia de morte em vida:

As portas e as janelas estão fechadas. O Papá não gosta de dormir com as portas e as janelas abertas não sei por quê. Pode-se pensar que é por causa da doença mas eu acho que ele foi sempre assim. Ele agora dorme no nosso quarto porque os médicos, quando lhe deram alta, recomendaram-lhe que dormisse numa cama dura, o que se improvisou no nosso quarto, já que não convinha mexer na cama de casal, no quarto dele. (HONWANA, 1980, p.36).

A mãe do garoto aparece, também, como um dos “assimilados” da província, uma vez que se comunica muito bem nas duas línguas, o ronga e o português – a de sua etnia e a do colonizador. Com os filhos, ela fala em português. Já com os subordinados, na machamba em que a família vive e trabalha, comunica-se em ronga. Percebe-se que se trata de uma mulher empoderada entre os seus iguais, dentro dos moldes do colonialismo, talvez por ser uma assimilada, tal qual seu marido e seu filho.

Entretanto, ao que parece, ela, diferente dos dois supracitados, pertence ao grupo dos “assimilados” aliados aos colonos. Possivelmente acredita numa vivência harmônica entre esses e os colonizados, mesmo tendo consciência da desigualdade e do racismo que permeia essa relação, em que o “indígena” é o lado mais fraco, em nome do relativo prestígio do qual goza o “assimilado”.

Com relação as fases de tomada de consciência, por parte do colonizado, como também na fase do agir desse sujeito massacrado pelo sistema colonial, percebe-se que o narrador nota a realidade de pobreza em que vive sua família, mas ainda – ao que nos parece – não consegue pensar numa solução para o problema e então não sente:

“Vontade de sair da cama, embora não tenha sono nenhum” (HONWANA, 1980, p.39).

A assimilação, nesse caso, é a única saída para o colonizado tornar-se sujeito, indivíduo. Infere-se que esse estágio de zumbificação em que se encontra a família do narrador, pode figurar como um interregno entre os dois momentos:

1. Momento em que o indígena recorre ao embranquecimento, como investimento para acessar a categoria de homem, o que envolvia autorrecusa, aceitação da colonização e admiração pelo branco, o que culmina em revolta e reações repreendidas violentamente pelo sistema;

2. Momento de recusa à assimilação e de retomada aos valores e tradições indígenas – quando o indígena entende que a autorrejeição é um investimento muito grande e, então, ele conclui que precisa romper com a colonização e lutar para transpor as barreiras sociais, implantadas pelo próprio sistema europeu.

- Além de, como os demais componentes da família, dormir um sono, aparentemente, perturbado, porque ressonam:

O Papá ressona. A Lolota e a Nelita na outra cama ressonam. A meu lado, aqui, debaixo do meu braço, o Nandito ressona também. Ontem, quando fui sorrateiramente abrir a porta, depois de deixar que os outros adormecessem bem, ouvi ressonar no outro quarto. Não sei se era a Mamã ou se era a Tina. Sim, acho que foi a Mamã, embora não tenha certeza. Será que também ressonarei quando adormecer? (HONWANA, 1980, p.36).

É importante salientar, contextualizando a obra e seu contexto histórico, que o momento a que a narrativa pode estar fazendo referência não era de conforto para o colonizado. Dentro do contexto de colonização, percebe-se um endurecimento do sistema, afinal Portugal vivia a Ditadura Nacional, o que levou novos comandos de opressão para suas colônias. Como dito anteriormente, o colonizado perdeu as vantagens sociais, que lhe eram asseguradas pelo Estatuto do Indigenato (abolido nos primeiros anos da década de 1960) e passou a viver, sem distinção entre indígenas e assimilados, explorados pelo trabalho.

Nesse caso, é válida uma leitura que situe esse estado de “morto-vivo”, esse ressonar da família do narrador, como um intervalo entre o primeiro momento de revolta, mas de pouca ação, devido a repressão; e o momento de entender a luta como uma saída possível para a mudança dessa realidade, por isso uma ação mais organizada e sistematizada.

 

terça-feira, 10 de junho de 2025

“PROSAS SEGUIDAS DE ODES MÍNIMAS”, de José Paulo Paes

 


Publicado em 1992, “Prosas seguidas de odes mínimas”, de José Paulo Paes, pertence ao 3º Tempo Modernista e é composto de duas partes contendo vinte textos em prosa poética e treze odes curtas (à exceção "A minha Perna").

O autor recorre nos títulos de poemas a uma nomenclatura da lírica tradicional: canção, noturno, balada, ode, e abordam aspectos memorialísticos, literários, existenciais e sociais, e têm a presença constante da esposa do autor, Dora.

A obra começa falando de morte e termina falando em nascimento, mostrando, ao que parece ser, uma experiência de separação.
O livro é uma mistura de temas que vão do lirismo à crítica política e fazem com que o leitor tenha uma ideia geral da obra. Por esses motivos é um dos livros mais completos. O autor repassa por toda sua trajetória e é como se tivesse a preocupação de lapidar novamente toda sua forma e estilo.

Em “Escolha de túmulo”, coloca o pós-morte como uma nova vida, um novo voo. Faz mais uma nova leitura em “Canção de exílio” do poema de Gonçalves Dias. Existe a presença da figura de seu pai no poema “Um retrato”, uma homenagem que também contém a morte como tema de reflexão. Esse mesmo tema encontra-se embutido no poema “Reencontro”, onde o autor se encontra em sonho com o teatrólogo Osman Lins, falecido anos atrás. O crédito de maior destaque pode ser dado ao poema: “À minha perna esquerda”. Trata-se de uma sequência de poemetos de características epigramáticas, num total de sete, onde conta sobre si mesmo de maneira tétrica e sarcástica sobre a perda de sua perna esquerda. É forte a intenção interpretativa que se embute no inevitável sacrifício. Nos poemas finais, tece uma quase crônica dos detalhes, sintetiza no cotidiano de objetos e lugares sua poética de forma condensada e rebuscada para dentro de si mesmo.

Contém nesta coletânea: “Escolha de túmulo”, “Noturno”, “Canção de exílio”, “Um retrato”, “Outro retrato”, “A casa”, “Iniciação”, “Nana para Glaura”, “Balancete”, “Reencontro”, “Balada do Belas-Artes”, “À minha perna esquerda”, “À bengala”, “Aos óculos”, “À tinta de escrever”, “Ao shopping center”, “Ao espelho”, “Ao alfinete” e “A um recém-nascido”.

É uma obra de caráter extremamente conciso, que remonta em alguns aspectos à literatura de Oswald de Andrade, como a paródia, o trocadilho, o humor, a poesia sintética, o espírito satírico. No entanto, o poeta não se aproxima apenas de Oswald de Andrade. Sente-se nele uma familiaridade com Drummond, principalmente no aspecto gauche de alguns poemas. Basta ler o texto "Canção do adolescente" transcrito abaixo:

Se mais bem olhardes
notareis que as rugas
umas são postiças
outras literárias.
Notareis ainda
o que mais escondo:
a descontinuidade
do meu corpo híbrido.
Quando corto a rua
para me ocultar
as mulheres riem
(sempre tão agudas!)
do meu corpo.
Que força macabra
misturou pedaços
de criança e homem
para me criar?
Se quereis salvar-me
desta anatomia,
batizai-me depressa
com as inefáveis
as assustadoras
águas do mundo.

Neste poema o eu-lírico se descreve como uma junção um tanto desajeitada do adolescente com o amadurecido, criando um híbrido dotado de uma anatomia que inspira compaixão ou riso. Mas o tom drummondiano também é percebido pelo cansaço com que enxerga a geração humana. E, assim como Drummond, o desencanto com a espécie humana não é suficiente para anular de maneira niilista o desejo por viver. É o que se vê abaixo, em “Mundo Novo”.

Como estás vendo, não valeu a pena tanto esforço:
a urgência na construção da Arca
o rigor na escolha dos sobreviventes
a monotonia da vida a bordo desde os primeiros dias
a carestia aceita com resmungos nos últimos dias
os olhos cansados de buscar um sol continuamente adiado.
E no entanto sabias de antemão que seria assim.
Sabias que a pomba iria trazer não um ramo de oliva mas de espinheiro.
Sabias e não disseste nada a nós, teus tripulantes,
que ora vês lavrando com as mesmas enxadas de Caim e Abel a terra mal enxuta do Dilúvio.
Aliás, se nos dissesses, nós não te acreditaríamos.

Veja que se assume o tom de “no entanto, prosseguimos animadamente vivendo” de algumas peças preciosas do Rosa do Povo, de Drummond, pois ocorre também a defesa da existência.

Além de vincular-se a Drummond, José Paulo Paes apresenta a mesma afetividade com que Bandeira recupera, por meio da memória, personagens do seu círculo familiar, principalmente as que povoaram sua infância. É o que pode ser visto, entre tantos exemplos, no texto abaixo, que resume as características das várias personagens descritas na obra, em poemas individualizados.

A CASA

Vendam logo esta casa, ela está cheia de fantasmas.
Na livraria, há um avô que faz cartões de boas-festas com corações de purpurina.
Na tipografia, um tio que imprime avisos fúnebres e programas de circo.
Na sala de visitas, um pai que lê romances policiais até o fim dos tempos.
No quarto, uma mãe que está sempre parindo a última filha.
Na sala de jantar, uma tia que lustra cuidadosamente o seu próprio caixão.
Na copa, uma prima que passa a ferro todas as mortalhas da família.
Na cozinha, uma avó que conta noite e dia histórias do outro mundo.
No quintal, um preto velho que morreu na Guerra do Paraguai rachando lenha.
E no telhado um menino medroso que espia todos eles; só que está vivo: trouxe até ali o pássaro dos sonhos.
Deixem o menino dormir, mas vendam a casa, vendam-na depressa.
Antes que ele acorde e se descubra também morto.

É interessante perceber que o estilo abreviado adotado pelo autor acaba por tornar todo o poema densamente carregado de significado. Tudo contribui para o sentido geral do texto. Basta notar as referências, explícitas ou implícitas, à ideia de morte em quase todas as personagens: “avisos fúnebres”, “romances policiais”, “caixão”, “mortalhas”, “outro mundo”, “morreu”. Olhar para o passado e relembrar figuras que não existem mais é ter consciência da passagem do tempo, o que implica a noção de envelhecimento e morte.

Outro aspecto importante e que constitui uma pista interpretativa bastante útil deixada pelo autor, é o fato de que a recuperação do seu passado é obtida graças à asa dos sonhos. Podem ser vistos aqui traços que prestar atenção ao caráter romântico (sonho, fantasia, emotividade) e algo entre simbolismo e surrealismo, principalmente este último.
José Paulo Paes detona um conjunto de imagens de relação absurda entre si, como que ditadas por um pensar em delírio e, portanto, livre das peias racionalistas. No entanto, é esse pássaro dos sonhos que lhe dá fôlego suficiente para ter, absurdamente ou não, uma visão ousadamente perfeita de nossa realidade.
Dentro ainda do campo do absurdo, deve-se lembrar que um esquema muito comum no poeta é a utilização das antíteses e principalmente paradoxos (figuras de linguagem ligadas à oposição) na expressão de sua realidade.
O que José Paulo Paes parece fazer é juntar elementos completamente contrários e por meio da forte tensão que se forma dessa união ganhar energia suficiente para que se enxergue mais eficientemente a realidade do que pela lógica racional (pode-se lembrar que tal procedimento era muito comum em Machado de Assis, que enxergava a realidade como algo dilemático. Mas se no autor realista essa elaboração se encaminhava para a fria análise da condição humana, em José Paulo Paes é lastreada por uma forte emotividade. É provável que haja mais familiaridade com o Barroco, famosa arte das oposições. No entanto, a sofisticação da linguagem da escola seiscentista, gerando textos que eram verdadeiras elucubrações, é bastante diferente do tom simples assumido em Prosas seguidas de odes mínimas).

É o que se vê, entre tantos casos, no trecho abaixo:

OUTRO RETRATO

O laço de fita
que prende os cabelos
da moça do retrato
mais parece uma borboleta.
Um ventinho qualquer
e sai voando
rumo a outra vida
além do retrato.
Uma vida onde os maridos
nunca chegam tarde
com um gosto amargo
na boca.

Deve-se observar que a ideia de laço, numa análise superficial, está ligada a prisão, opondo-se, portanto, a voo. No entanto, de forma surrealista, o nó corredio é facilmente associado a borboleta. Um estudo profundo revela que tal associação não é, porém, absurda, já que remonta à ideia de que todo retrato faz retomar um passado em que sonhos, desejos eram montados cheios de idealização. Dessa forma, o poema acaba por avaliar agudamente o presente, que se desviou grosseiramente das expectativas de um passado ingênuo.

Também é necessário lembrar que José Paulo Paes possui um ponto de contato com uma qualidade comum a Bandeira e Drummond: a emotividade retirada das coisas simples, cotidianas. Consegue da mesma forma que os dois pilares da poesia modernista, ter os mesmos passos de um cronista moderno, alçando vôos líricos altíssimos.

Assemelha-se ainda a João Cabral de Melo Neto nos seguintes aspectos: linguagem enxuta, densidade e materialidade verbal, fixação de elementos concretos, recortados em versos breves, lucidez vigilante, recusa do supérfluo e do sentimentalismo, rigor intelectual e a imaginação plástica, escassez de adjetivação e gosto pela rima toante.
Curioso é perceber que os trechos apresentados até agora, tratados como poemas, na realidade correspondem à primeira parte da obra, composta de “prosas”. Sua elaboração, no entanto, recebe um trato de linguagem tal que se aproximam por demais da poesia. Pode-se tratar, portanto, de um famoso gênero criado pelos simbolistas, o da prosa poética, já percorrido por Cruz e Sousa, Aníbal Machado e Rubem Braga.
Os poemas têm, tradicionalmente, um tom grandioso. No entanto, o poeta engrandece coisas simples, como um alfinete, um fósforo, uma garrafa ou até mesmo a tinta de escrever, como se vê a seguir

À TINTA DE ESCREVER

Ao teu azul fidalgo mortifica
registrar a notícia, escrever
o bilhete, assinar a promissória
esses filhos do momento. Sonhas
mais duradouro o pergaminho
onde pudesses, arte longa em vida breve
inscrever, vitríolo o epigrama, lágrima
a elegia, bronze a epopeia.
Mas já que o duradouro de hoje nem
espera a tinta do jornal secar,
firma, azul, a tua promissória
ao minuto e adeus que agora é tudo História.

Segundo Antonio Candido, há em José Paulo Paes uma predileção pelo pequeno, pelo mínimo, que lhe alimenta de fôlego suficiente para não só engrandecê-lo, mas também de buscar o gigantesco.


terça-feira, 27 de maio de 2025

ANÁLISE CRÍTICA LITERÁRIA: MONOTONIA, FRAGMENTAÇÃO E IDEAL EM “QUARTO DE DESPEJO: DIÁRIO DE UMA FAVELADA”, 1960, CAROLINA MARIA DE JESUS.

 1. A MONOTONIA DA ESCRITA E DOS DIAS:

- O DIÁRIO É A PRISÃO AO COTIDIANO.

- A DESCRIÇÃO DOS ACONTECIMENTOS DOS SEUS DIAS INICIA-SE SEMPRE DA MESMA FORMA, OU SEJA, É MARCADA PELA ROTINA:

- LEVANTAR, BUSCAR ÁGUA, CUIDAR DOS FILHOS, SAIR EM BUSCA DE ALGO QUE POSSA VENDER PARA PODER COMPRAR COMIDA, REALIZAR TAREFAS DOMÉSTICAS, ESCREVER, DESCANSAR O CORPO.

- NESSA REPETIÇÃO PASSAM-SE OS DIAS E NADA MUDA.

- É COMO SE O MAL SOCIAL APRESENTADO PELA AUTORA FOSSE IMUTÁVEL, POSSUINDO APENAS PEQUENAS VARIAÇÕES DE QUANTIDADE DE COMIDA QUE SE POSSUI, UNS DIAS MAIS, OUTROS MENOS, OUTROS AINDA, NADA.

- CURIOSO É QUE EM DETERMINADO MOMENTO DO LIVRO A REPETIÇÃO PARECE INCOMODAR A PRÓPRIA ESCRITORA, AO ANOTAR NO DIA 16 DE JUNHO:

- “[...] VOCÊS JÁ SABEM QUE EU VOU CARREGAR ÁGUA TODOS OS DIAS.

- AGORA VOU MUDAR O INÍCIO DA NARRATIVA DIURNA, ISTO É, O QUE OCORRE COMIGO DURANTE O DIA” (QD, p. 110).

- A PARTIR DE ENTÃO A DESCRIÇÃO MINUCIOSA CEDE LUGAR A UMA FRASE ENXUTA: “FIZ MEUS DEVERES”.

- O FATO DE O LIVRO ACABAR COM UM REGISTRO DO DIA 01 DE JANEIRO DE 1960, NO QUAL SE LÊ:

- “LEVANTEI AS 5 HORAS E FUI CARREGAR ÁGUA” (QD, p. 167).

- PERMITE QUE SE VISUALIZE A FORMA COMO A ESPERANÇA DE CAROLINA E SUA ATIVIDADE ROTINEIRA SE SUCEDEM “INTERMINAVELMENTE” OU RESULTADO DA POBREZA QUE A OBRIGA VIVER NESSA SEQUÊNCIA DE REPETIÇÕES.

2. A FRAGMENTAÇÃO: MOSAICO DO COTIDIANO

- A FRAGMENTAÇÃO DECORRE PRINCIPALMENTE PELO CONTÍNUO DAS ANOTAÇÕES PRÓPRIAS DO DIÁRIO QUE, AMPARADAS PELA NECESSIDADE DE CONTAR O COTIDIANO, ACABAM POR COMPOR UM TEXTO REPLETO DE PEQUENAS PARTES, COMO UMA COLCHA DE RETALHOS.

- O ESCRITOR DE DIÁRIOS SEGUE O COMPASSO DO CALENDÁRIO, CUJAS DATAS ALÉM DE PROCURAR ORGANIZAR UMA POSSÍVEL EXISTÊNCIA, CLASSIFICAM OS ACONTECIMENTOS DENTRO DA NARRATIVA CRIANDO UM ELO QUE UNE, MUITAS VEZES, ACONTECIMENTOS SEM NENHUMA LIGAÇÃO ENTRE SI.

- O RESULTADO É UM CONJUNTO DE ENXERTOS QUE SEGUEM UMA LINHA CRONOLÓGICA DE FORMA DESCONTÍNUA E DÃO CONTA DE APRESENTAR AS IDAS E VINDAS DE CAROLINA E DE SEUS FILHOS.

3. CAROLINA E SEU IDEAL:

- NO DIA 02 DE JUNHO DE 1958, O DIÁRIO TRAZ A SEGUINTE REFLEXÃO:

- “ (...)  O HOMEM NÃO HÁ DE GOSTAR DE UMA MULHER QUE NÃO PODE PASSAR SEM LER. E QUE LEVANTA PARA ESCREVER. E QUE DEITA COM LÁPIS E PAPEL DEBAIXO DO TRAVESSEIRO.

- TODOS TEM UM IDEAL. O MEU É GOSTAR DE LER” (QD, p. 23).

- “POR ISSO É QUE EU PREFIRO VIVER SÓ PARA O MEU IDEAL” (QD, p. 44).

- O PRIMEIRO MOTIVO ANOTADO PELA AUTORA PARA REFUTAR A UNIÃO REFERE-SE A SUA IDADE: 44 ANOS, COM TRÊS FILHOS E SEM PERSPECTIVAS DE VIDA, PREFERE CONTINUAR SOZINHA...

- NO ENTANTO, A AUTORA APRESENTA OUTRA JUSTIFICATIVA: A IMPOSSIBILIDADE DE COMPARTILHAR LEITURA, ESCRITA E UNIÃO AFETIVA.

- NESSE SENTIDO, ELEGE COMO ÚNICA COMPANHIA EM SEU LEITO OS LIVROS E OS CADERNOS ACHADOS NOS LIXOS NOS QUAIS ANOTA SUAS REFLEXÕES E ANGÚSTIAS.

- A AUTORA DEMONSTRA O ENTENDIMENTO DA AMEAÇA QUE A ESCRITA DA MULHER PODE REPRESENTAR: A DIFICULDADE PARA O HOMEM VER-SE PRETERIDO EM FAVOR DE OUTRO DESEJO E DE OUTRO PRAZER QUE NÃO ANCORE NELE.

- EM VÁRIOS MOMENTOS DO DIÁRIO CAROLINA DEIXA CLARO O QUANTO PREZA A SUA LIBERDADE AO AFIRMAR QUE CRIA SOZINHA OS FILHOS, QUE MANTÉM SOZINHA SUA FAMÍLIA, QUE É DONA DE SI E QUE DOMINA SEUS IMPULSOS.

- ASSIM, A INSERÇÃO DE UM HOMEM EM SUA VIDA PODE SER VISTA COMO UMA AMEAÇA, A PARTIR DO MOMENTO EM QUE ESTE SE CONFIGURA COMO ELEMENTO DE DOMINAÇÃO CAPAZ DE PARALISAR O SEU PROCESSO DE AFIRMAÇÃO ENQUANTO MULHER, MÃE E ESCRITORA.

 

quinta-feira, 17 de abril de 2025

A ESCRITA E A LEITURA DE QUARTO DE DESPEJO: DIÁRIO DE UMA FAVELADA, 1960, CAROLINA MARIA DE JESUS (1914-1977)

CAROLINA MARIA DE JESUS ESCREVE PARA DENUNCIAR A FAVELA E PARA SAIR DELA; ESCREVE TAMBÉM PARA, DIFERENCIANDO-SE DOS OUTROS MORADORES, LUTAR CONTRA O REBAIXAMENTO A QUE ESTÃO SUJEITOS OS MISERÁVEIS, NUM MOMENTO EM QUE SE ANUNCIA NOVO SALTO MODERNIZADOR DE SÃO PAULO E DO PAÍS.

Carolina usava de uma originalidade incomum em sua escrita, mostrando que sua visão de mundo estava além da maioria de outras pessoas da sua época. Utilizando o recurso de um discurso do “EU”, INDIVIDUALISTA, a escritora se transforma em um “EU” SOCIAL para, dessa forma, tecer uma crítica contundente da realidade da favela onde vive.

- CAROLINA DE JESUS NÃO FOI LIDA POR POBRES E NEM OS INFLUENCIOU E SUA RELAÇÃO COM A COMUNIDADE DE CANINDÉ, NA QUAL VIVEU POR QUASE DEZ ANOS, FOI SEMPRE HOSTIL. AO MESMO TEMPO EM QUE FALAVA DA MISÉRIA, CLAMAVA COM FORÇA POR MUDANÇAS NA VIDA. MALDIZIA SEUS VIZINHOS E COMPANHEIROS DE INFORTÚNIO; ERA SURPREENDENTE E, AO MESMO TEMPO, CONTRADITÓRIA.

MORAR NA FAVELA ERA SE CONDENAR DUAS VEZES A POBREZA, AQUELA GERADA PELO MODELO ECONÔMICO E PELO MODELO TERRITORIAL.

1 - A ESCRITA E A LEITURA:

1.1 – ESCRITA COMO VÁLVULA DE ESCAPE E SALVAÇÃO:

“HÁ TEMPOS QUE EU PRETENDIA FAZER O MEU DIÁRIO. MAS EU PENSAVA QUE NÃO TINHA VALOR E ACHEI QUE ERA PERDA DE TEMPO” (QD,1960, p.30)

A VOZ DE CAROLINA EM SEUS REGISTROS DIÁRIOS, NÃO REPRESENTA APENAS A SI MESMA, MAS TODAS AS MULHERES QUE SE ENCONTRAM EM SITUAÇÕES ANÁLOGAS NA SOCIEDADE BRASILEIRA. O SEU POSICIONAMENTO DE NÃO SILENCIAMENTO REFLETE A NÃO RESIGNAÇÃO DIANTE DAS SITUAÇÕES DE EXCLUSÃO E INVISIBILIDADE.

CAROLINA ESCREVE PARA SALVAR A ESCRITA, PARA SALVAR SUA VIDA PELA ESCRITA, PARA SALVAR SEU PEQUENO “EU” (AS DEFORMAÇÕES QUE SE TINHAM CONTRA OS OUTROS, AS MALDADES QUE SE DESTILAM) OU PARA SALVAR SEU GRANDE “EU”, DANDO-LHE UM POUCO DE AR, E ENTÃO SE ESCREVE PARA NÃO SE PERDER NA POBREZA DOS DIAS.

FALTAVA-LHE O FEIJÃO, FALTAVA-LHE O PÃO, MAS NÃO LHE FALTAVAM PALAVRAS PARA JOGAR NA FOLHAS DE PAPEL.

EM VÁRIOS MOMENTOS DO DIÁRIO, A PRÁTICA DA LEITURA, SEMPRE PRESENTE NO COTIDIANO DA AUTORA, PREENCHE OS ESPAÇOS VAZIOS DO TEMPO.

QUANDO CHOVE E ELA SE VÊ IMPOSSIBILITADA DE SAIR PRA CATAR PAPEL, DEBRUÇA-SE SOBRE O LIVRO.

ANTES DE DORMIR, ELA LÊ PARA ACALMAR, RELAXAR E VIAJAR.

DEPOIS DE RECEBER GÊNEROS ALIMENTÍCIOS DOADOS POR UM CERTO CENTRO ESPÍRITA, CAROLINA ACALMA A FOME E OS ÂNIMOS E ESCREVE:

“O NERVOSO QUE EU SENTIA AUSENTOU-SE. APROVEITEI A MINHA CALMA INTERIOR PARA EU LER” (QD. p. 10).

“QUANDO EU NÃO TINHA NADA O QUE COMER, EM VEZ DE XINGAR, EU ESCREVIA. TEM PESSOAS QUE, QUANDO ESTÃO NERVOSAS, XINGAM OU PENSAM NA MORTE COMO SOLUÇÃO. EU ESCREVIA O MEU DIÁRIO” (QD, p. 195).

GOSTAVA MUITO DE LER E RELATAVA QUE, AO LER, O INDIVÍDUO ADQUIRIA BOAS MANEIRAS E FORMAVA O CARÁTER.

A VIDA NA FAVELA ERA FEITA DE MUITA LUTA, ESCREVER O DIÁRIO SERVIA COMO FORMA DE DESABAFO E DENÚNCIA DA “FALTA DE TUDO” QUE AQUELES MORADORES TINHAM.

“(...) LAVEI AS LOUCAS E VARRI O BARRACO. DEPOIS FUI DEITAR. ESCREVI UM POUCO. SENTI SONO, DORMI. ACORDEI VÁRIAS VEZES NA NOITE, COM AS PULGAS QUE PENETRA NAS NOSSAS CASAS, SEM CONVITE” (QD, p. 117).

- A ESCRITA E A LEITURA A MANTINHAM VIVA, VISTO QUE ERA POR MEIO DESSAS, QUE ELA ENCONTRAVA FORÇAS PARA COLOCAR PARA FORA TODAS SUAS REVOLTAS, ANSEIOS E ESPERANÇAS, DE REGISTRAR SUA CONDIÇÃO DE SUBALTERNIDADE E AS MÁCULAS QUE LHE FERIAM ENQUANTO SER HUMANO E AOS DEMAIS QUE A RODEAVAM.

(...) “AS VEZES MUDAM ALGUMAS FAMILIAS PARA A FAVELA, COM CRIANÇAS. NO INICIO SÃO IDUCADAS, AMAVEIS.

DIAS DEPOIS USAM O CALÃO, SÃO SOEZES E REPUGNANTES. SÃO DIAMANTES QUE SE TRANSFORMAM EM CHUMBOS.

TRANSFORMAM SE EM OBJETOS QUE ESTAVAM NA SALA DE VISITA E FORAM PARA O QUARTO DE DESPEJO (QD, p. 39).

ESCREVER ERA A VÁLVULA DE ESCAPE ALIADO À SUA RESISTÊNCIA, MAS TAMBÉM A OPORTUNIDADE DE FAZER PARTE DA SALA DE VISITAS COMO DIZ DURANTE A NARRATIVA:

“DEIXEI O LEITO PARA ESCREVER. ENQUANTO ESCREVO VOU PENSANDO QUE RESIDO NUM CASTELO COR DE OURO QUE RELUZ NA LUZ DO SOL. QUE AS JANELAS SÃO DE PRATA E AS LUZES BRILHANTES. QUE A MINHA VISTA CIRCULA NO JARDIM E EU COMTEMPLO AS FLORES DE TODAS AS QUALIDADES (...). EU PRECISO CRIAR ESTE AMBIENTE DE FANTASIA, PARA ESQUECER QUE ESTOU NA FAVELA” (QD,1960, p.60)

1.2 - A LEITURA E A ESCRITA DISTINGUEM A AUTORA DOS DEMAIS MORADORES DA FAVELA.

CAROLINA SE TORNOU LEITORA POR MEIO DE LIVROS, REVISTAS, JORNAIS, ENTRE OUTROS GÊNEROS DE ESCRITAS QUE ENCONTRAVA NOS LIXOS E ISTO, A DIFERE DOS DEMAIS MORADORES DA FAVELA, CONFERINDO-LHE UM CERTO STATUS SOCIAL.

CAROLINA CONTA QUE PELO SEU JEITO DE SER E AGIR ERA HOSTILIZADA PELAS PESSOAS DA FAVELA. FALA SOBRE AS IMPLICÂNCIAS E PERSEGUIÇÕES SOFRIDAS POR SEUS FILHOS QUE MUITAS VEZES ERAM VÍTIMAS DE MAUS-TRATOS POR PARTE DOS MORADORES E ATÉ MESMO DE COMO UM DE SEUS MENINOS CHEGOU A SER ACUSADO DE ASSEDIAR UMA GAROTA MENOR QUE ELE.

“NUNCA VI UMA PRETA GOSTAR TANTO DE LIVROS COMO VOCÊ”.

ALÉM DE TODAS AS LIMITAÇÕES QUE ENCONTRAVA PARA SOBREVIVER, AINDA SOFRIA PRECONCEITO ÉTNICO E DE GÊNERO.

AO ESCREVER CAROLINA FOGE DA PELE PRETA QUE A ENCARCERA E DO LUGAR PRETO ONDE MORA.

SEU PRÓPRIO “POVO”, QUESTIONAVA O SEU INTERESSE PELA LEITURA, DEIXANDO TRANSPARECER QUE UMA MULHER NEGRA E POBRE NÃO TINHA QUE GASTAR TEMPO COM LIVROS.

QUANDO QUESTIONADA SOBRE O QUE ESCREVE, RESPONDE:

“TODAS AS LAMBANÇAS QUE PRATICA OS FAVELADOS, ESTES PROJETOS DE GENTE HUMANA” (QD, p. 20).

QUANDO ENFRENTADA, AMEAÇA:

“VOU ESCREVER UM LIVRO REFERENTE A FAVELA. HEI DE CITAR TUDO O QUE AQUI SE PASSA. E TUDO O QUE VOCÊS ME FAZEM. EU QUERO ESCREVER O LIVRO, E VOCÊS COM ESTAS CENAS DESAGRADAVEIS ME FORNECEM OS ARGUMENTOS” (QD, p. 17).

ALÉM DISSO, VÊ EM SUA PRODUÇÃO AUTOBIOGRÁFICA UMA OPORTUNIDADE DE GANHAR DINHEIRO E SAIR DA FAVELA.

NAS ANOTAÇÕES DE 27 DE JUNHO DE 1958, ELA APONTA PARA O CARÁTER VICIOSO DA LEITURA:

“TEM MUITAS PESSOAS AQUI NA FAVELA QUE DIZ QUE EU QUERO SER MUITA COISA PORQUE NÃO BEBO PINGA [...] EU NÃO BEBO PORQUE NÃO GOSTO, E ACABOU-SE. EU PREFIRO EMPREGAR MEU DINHEIRO EM LIVROS DO QUE NO ÁLCOOL” (QD, p. 65).

AO ASSOCIAR A LEITURA AO VÍCIO DA BEBIDA, A AUTORA INDICIA QUE TAL PRÁTICA PERMITE A ELE “EMBRIAGAR-SE” E FUGIR DA DURA REALIDADE NA QUAL ESTÁ IMERSA.

1.3 – A ESCRITA COMO INSTRUMENTO DE DEFESA: DENUNCIAR A FAVELA E PARA SAIR DELA

AO DOCUMENTAR NOS SEUS CADERNOS O COTIDIANO DA FAVELA, AO TORNAR PÚBLICO O QUE É APARENTEMENTE PRIVADO, CAROLINA TORNA-SE INDESEJADA NO AMBIENTE ONDE VIVE.

ELA PASSA A USAR A ESCRITA PARA SE DEFENDER: DIANTE DAS AGRESSÕES VERBAIS O ARGUMENTO É SEMPRE O MESMO: REGISTRAR NOS CADERNOS O NOME DAQUELES QUE A INSULTAM.

CAROLINA SEMPRE EMPUNHAVA A ARMA MAIS FATAL, QUE NÃO VERTE SANGUE AO ATINGIR, MAS PROPÍCIA REFLEXÕES E PENSAMENTOS, COMO ELA MESMA DIZIA:

“NÃO TENHO FORÇA FÍSICA, MAS AS MINHAS PALAVRAS FEREM MAIS DO QUE ESPADAS. E AS FERIDAS SÃO INCICATRISAVEIS” (QD, p. 49).

“HÁ DE EXISTIR ALGUÉM QUE LENDO O QUE EU ESCREVO DIRÁ ... ISTO É MENTIRA! MAS, AS MISÉRIAS SÃO REAIS. ... O QUE EU REVOLTO É CONTRA A GANÂNCIA DOS HOMENS QUE ESPREMEM UNS AOS OUTROS COMO SE ESPREMESSE UMA LARANJA” (QD, p. 47).

O REPÚDIO A AUTORA ERA TANTO QUE NO DIA EM QUE IA SE MUDAR DA FAVELA, DEPOIS DO SUCESSO DO LIVRO, FOI APEDREJADA PELOS VIZINHOS.

1.4 – A ESCRITA COMO UM LIVRO DE CONTABILIDADE:

“QUARTO DE DESPEJO” A AUTORA REGISTRA O DINHEIRO QUE RECEBE DEPOIS DE LEVAR A UM DEPÓSITO OS PAPÉIS, FERROS E MATERIAIS RECICLÁVEIS RECOLHIDOS NAS RUAS.

“COMPRO PÃO OU SABÃO? COMPRO MACARRÃO OU GORDURA? ”

“FUI FAZER COMPRAS NO JAPONÊS. COMPREI UM QUILO E MEIO DE FEIJÃO, 2 DE ARROZ E MEIO DE AÇÚCAR, 1 DE SABÃO. MANDEI SOMAR. 100 CRUZEIROS. O AÇÚCAR AUMENTOU. A PALAVRA DA MODA, AGORA, É AUMENTOU” (QD, 1960, p.129).

1.5 – A ESCOLHA DAS PALAVRAS:

“OS BONS EU ENALTEÇO, OS MAUS EU CRITICO. DEVO RESERVAR AS PALAVRAS SUAVES PARA OS OPERÁRIOS, PARA OS MENDIGOS, QUE SÃO ESCRAVOS DA MISÉRIA” (QD, p. 54).

1.6 – A LIMITAÇÃO DA ESCRITA:

- A AUTORA REGISTRA A DIFICULDADE DE SIMBOLIZAR “O QUE ESTÁ PARA ALÉM DA SUA REALIDADE SOFRIDA”.

“HÁ COISAS BELAS NO MUNDO QUE NÃO É POSSÍVEL DESCREVER-SE” (QD, 2000, p. 39).

 1.7 – A ESCRITA COMO POSSIBILIDADE DE ASCENSÃO SOCIAL:

É ATRAVÉS DA PUBLICAÇÃO DO SEU LIVRO QUE ELA VISUALIZA A POSSIBILIDADE DE SAIR DO “QUARTO DE DESPEJO”, LUGAR ESTE, QUE CAUSA EM CAROLINA UM ENORME DESCONFORTO.

O DESCONFORTO EXPLICA PORQUE A AUTORA NUNCA RECONHECE A FAVELA ENQUANTO UM ESPAÇO QUE SEJA SEU, MAS O VÊ COMO UM ESPAÇO TEMPORÁRIO, LUGAR DE TRANSIÇÃO.

ALGUMAS VEZES IRRITA-SE POR REGISTRAR EM SEUS CADERNOS A PALAVRA “CASA” AO SE REFERIR AO BARRACO ONDE MORA.

FICA FELIZ AO SAIR NAS RUAS E AS PESSOAS BATEREM-LHE COM AS PORTAS NA CARA, POIS ASSIM NÃO PRECISA PARAR E CONVERSAR COM OS VIZINHOS.

1.8 – O MOMENTO DA ESCRITA E O MOMENTO DA DOR:

- CAROLINA AO COLOCAR NO PAPEL SUAS IMPRESSÕES ACERCA DA SUA VIDA FUNCIONA COMO UM DESABAFO, UMA FORMA DE COMPREENDER-SE. POR OUTRO LADO, AO ESCREVER SUAS IMPRESSÕES CAROLINA ESTARIA TRAZENDO PARA O INSTANTE DA ESCRITA O MOMENTO DO TRAUMA, DA DOR.

1.9 – INTERTEXTUALIDADE:

CAROLINA TAMBÉM ERA CONHECEDORA DE LITERATURA COMO NOS MOSTRA AO DIALOGAR COM ESCRITAS DOS POETAS CASTRO ALVES E CASIMIRO DE ABREU (1837-1860):

“(...) TOQUEI O CARRINHO E FUI BUSCAR MAIS PAPEIS. A VERA IA SORRINDO. E EU PENSEI NO CASEMIRO DE ABREU, QUE DISSE:

“RI CRIANÇA. A VIDA É BELA”.

- SÓ SE A VIDA ERA BOA NAQUELE TEMPO. PORQUE AGORA A EPOCA ESTÁ APROPRIADA PARA DIZER: CHORA CRIANÇA. A VIDA É AMARGA” (QD, p. 37).

 

sábado, 5 de abril de 2025

MÚSICA ZERA A REZA, CAETANO VELHOSO

 


ZERA A REZA, CAETANO VELOSO

Vela leva a seta tesa

Rema na maré

Rima mira a terça certa

E zera a reza

Zera a reza, meu amor

Canta o pagode do nosso viver

Que a gente pode entre dor e prazer

Pagar pra ver o que pode

E o que não pode ser

A pureza desse amor

Espalha espelhos pelo carnaval

E cada cara e corpo é desigual

Sabe o que é bom e o que é mau

Chão é céu

E é seu e meu

E eu sou quem não morre nunca

Vela leva a seta tesa

Rema na maré

Rima mira a terça certa

E zera a reza

  “Zera a reza”, primeira letra do disco “Noites do Norte” (2000) revela mais uma demonstração da arte neobarroca de Caetano Veloso, artista engajado com seu tempo, cujas letras são, quase sempre, tidas como complexas e de difícil entendimento, ou seja, o receptor desfruta a letra e a melodia, mas encontra dificuldades para entender a mensagem.

O neobarroco, que segundo Chiampi (1998), é uma reciclagem do barroco histórico feita nos dias atuais, surge como característica do “fim das utopias”. Severo Sarduy (1979), em seu ensaio O barroco e o neobarroco, apontam três mecanismos de artificialização que são á base da teoria neobarroca, a saber: substituição, troca do objeto-foco por outro, que faz referência àquele; proliferação, a multiplicação de metonímias do objeto-foco através da repetição de termos e mesmo sequências de significantes; e condensação, fusão de dois dos termos de uma cadeia de significantes, de cujo choque resulta um terceiro termo que resume semanticamente os dois primeiros.

“As palavras da letra são uma brincadeira nada rigorosa com inversões e espelhamentos” (Veloso, 2003).

Esta definição feita pelo compositor refere-se aos quatro primeiros versos da letra, em que os anagramas: vela-leva; seta-tesa; rema-maré; rima-mira; terça-certa; zera-reza, utilizados aqui como ludismo, desviam a atenção do receptor para o texto sob a letra.
Em “Zera a reza” apresenta um dualismo pois, citando a reza, momento sagrado em que o ser se comunica com o divino, e a música/dança, momento de profanação do corpo e, o pecado, Caetano Veloso parodia veladamente com a letra Deus e o Diabo (1989), de sua autoria, em que o verso “O carnaval é a invenção do Diabo / que Deus abençoou”, fortalece a correlação entre espírito e corpo; perdão e pecado; virtude e prazer, características fundamentais do estilo barroco.
Nos versos: “Zera a reza meu amor / canta o pagode do nosso viver” há um convite para que o receptor, evocado através da expressão “meu amor”, abandone seu estado contemplativo, principalmente, a reza, e aproveite ao máximo sua vida, pois tudo é transitório e a vida breve. Há aqui a intertextualidade com os versos da canção Deixa sangrar (1989), também de Caetano: “Deixa o mar ferver, deixa o sol despencar / deixa o coração bater, se despedaçar / chora depois mas agora deixa sangrar, deixa o carnaval passar”, ou seja, é preciso zerar a reza, livrar-se das convenções e extravasar os sentimentos e as emoções.

O carnaval é um conjunto de festividades populares que ocorrem em diversos países e regiões católicas nos dias que antecedem o início da Quaresma, principalmente do domingo da Quinquagésima à chamada terça-feira gorda, “a terça certa”.

A própria origem do carnaval é obscura, embora seja encontrado já no latim medieval, como carnem levare ou carnelevarium, palavra dos séculos XI e XII, que significava a véspera da quarta-feira de cinzas, isto é, a hora em que começava a abstinência da carne durante os quarenta dias nos quais, no passado, os católicos eram proibidos pela igreja de comer carne.
É possível que suas raízes se encontrem num festival religioso primitivo, pagão, que homenageava o início do Ano Novo e o ressurgimento da natureza, mas há quem diga que suas primeiras manifestações ocorreram na Roma dos césares, ligadas às famosas saturnálias, de caráter orgíaco. Contudo, o rei Momo é uma das formas de Dionísio, o deus Baco, patrono do vinho e do seu cultivo; e isto, faz recuar a origem do carnaval para a Grécia arcaica, para os festejos que honravam a colheita. Sempre uma forma de comemorar, com muita alegria e desenvoltura, os atos de alimentar-se e beber, elementos indispensáveis à vida. É, portanto “entre dor e prazer” que acontece o pagode, o samba, o carnaval, feito, em grande parte, por pessoas que passam a maior parte do ano em meio a dor, pela marginalidade social imposta.
Dessa maneira, é preciso “pagar pra ver o que pode / e o que não pode ser”, arriscar-se, extravasar-se com toda coragem, sem medo e sem culpas, mesmo que seja por poucos dias.
Segundo Bakhtin (1999), em seus estudos sobre o contexto de Rabelais, “os bufões não eram atores que desempenhavam seu papel no palco. Pelo contrário, eles continuavam sendo bufões e bobos em todas as circunstâncias da vida. Situavam-se na fronteira entre a vida e a arte”. Bakhtin (1999) observa ainda que os atores assistiam às funções do cerimonial sério, para parodiá-los. O carnaval ignora toda distinção entre atores e expectadores, pois os expectadores vivem o carnaval. Obviamente, as representações carnavalescas atuais são outras, mas ainda percebe-se esta essência do carnaval como uma “segunda vida”, principalmente para aqueles que trabalham durante o ano preparando a festa, apesar da turistização, e de se fazer hoje um carnaval com palco (Marquês de Sapucaí, Rio de Janeiro; entre outros).
O folião é um participante essencial para a existência do carnaval, seu sujeito e objeto; ator e expectador, onde o “chão é céu” por onde as estrelas, que são os passistas desfilam e brilham no palco ilimitado para o show de uma vida “que pode e o que não pode ser”, livre das convenções morais, sociais, religiosas e, com a própria realidade.
Há uma citação de um verso da letra Gente (1977), do mesmo autor, em que diz que “Gente é pra brilhar”. O carnaval permite a elevação do povo, inclusive os mais carentes, ao céu e às estrelas.
Não há hierarquia, desigualdades e nem diferenças. O essencial é festejar a vida com toda a expressividade que o corpo permite, libertando o “eu reprimido” até na “terça certa”, a “terça-feira gorda”, o último dia da festa.
Para Bakhtin (1999) “convertia-se na forma de que se revestia a segunda vida do povo, o qual penetrava temporariamente no reino utópico da universalidade, liberdade, igualdade e abundância”.
O verso “E eu sou o que não morre nunca”, parodia com outros, “o samba não vai morrer”, da canção Desde que o samba é samba (1993); “o samba é pai do prazer, o samba é filho da dor” e atenta para o fato de que, o eu-lírico incorpora o próprio samba, zerando o sagrado, transcendendo e imortalizando como um deus.
Nos versos: “A pureza desse amor / espalha espelhos pelo carnaval” apontam para as pessoas que ideologicamente e passionalmente trabalham o ano todo, envolvidas na expectativa do carnaval e em seu brilho.
Os espelhamentos, quase anagramáticos desenvolvendo novas técnicas poéticas em “Espalha-espelhos e cada-cara” retomam a ideia inicial do jogo como recurso para desviar a atenção do leitor tal como observa Affonso Ávila (1994), ao tratar do artista barroco. Ao fazer o jogo de espelhamentos com as palavras do refrão: vela-leva; seta-tesa; rema-maré; rima-mira; terça-certa; zera-reza, e ao dizer que “espalha espelhos” Caetano Veloso trabalha criando um processo de metalinguagem na letra.
A proliferação dos significantes: “pagode do nosso viver”; “pode entre dor e prazer”; “vê o que pode e o que não pode ser”, “espelho”, “conhece o bom e o mau”, “que não morre nunca”, resulta no significado “samba”, simbolizado no título por “zera a reza”.
Não é por acaso que Zera a reza abre o disco Noites do Norte (2000), um disco que, inspirado pelo pensamento do abolicionista Joaquim Nabuco, tem fortemente impresso nas letras a questão da cultura afra-descendência. Portanto iniciá-lo falando do samba, dança de origem africana, herança dos negros trazidos como escravos, e do carnaval, festa popular que, no Brasil, incorporou o samba, além do frevo e hoje do axé, como ritmos matrizes. Todavia, Caetano Veloso faz essa homenagem de forma velada, através do jogo significante/significado, das proliferações e substituições que caracterizam a obra neobarroca.