segunda-feira, 30 de junho de 2025

“INVENTÁRIO DE IMÓVEIS E JACENTES”, EM “NÓS MATAMOS O CÃO TINHOSO”, 1964, LUÍS BERNARDO HONWANA


“Nós Matamos o Cão Tinhoso” é a única prosa publicada em Moçambique, no período colonial, referenciada como marco histórico e testemunhal, como também um manifesto, pois representa a luta do colonizado moçambicano e a coletividade da qual ele participa e pela qual ele fala.

A partir da edição de 1980, é composto por sete contos: “Nós Matamos o Cão Tinhoso”, “Inventário de Imóveis e Jacentes”, “Dina”, “A Velhota”, “Papá, Cobra e Eu”, “As Mãos dos Pretos” e “Nhinguitimo”.

Na publicação brasileira realizada pela Editora Kapulana em 2017, há também um conto do autor nunca antes publicado em livro, “Rosita, até morrer”.

De acordo com Honwana, alguns dos contos presentes no “Nós Matamos o Cão Tinhoso” foram divulgados, antes de 1964, em periódicos:

“Os contos que compõem o “Nós Matámos o Cão Tinhoso” foram escritos entre 1961 e 1963 e o livro foi publicado antes da minha prisão (que ocorreu em dezembro de 1964).

O conto "Inventário de Imóveis e Jacentes" foi o primeiro a ser publicado na imprensa moçambicana (Suplemento literário de A Tribuna).

“INVENTÁRIO DE IMÓVEIS E JACENTES”: típica família moçambicana e sua residência.

Narrativa, ainda que simples, permite o levantamento de importantes questões, pois “faz com que o leitor entre no território do não dito, daquilo que o conto não relata, da verdadeira situação que não está a ser contada”.

Em “Inventário de Imóveis e Jacentes”, através de uma descrição quase mórbida, Ginho apresenta o inventário da pobreza que acomete sua família – parte da população indígena. Num desenho, quase que minucioso, do seu contexto familiar, o garoto vai entregando-nos pistas, que nos ajuda a pensar as mentes dos colonizados, frente a essa realidade imposta pelo sistema colonial.

Essas pistas nos permitem ver, também, que, tanto ele quanto o seu pai, mesmo inseridos na realidade familiar, que é de estágio letárgico, possuem um posicionamento diferente.

Não obstante, descobrimos que o pai do narrador já foi presidiário e que está doente. Prisão de colonizado, em período colonial, só nos leva a pensar em envolvimento com as forças estruturantes da descolonização.

Ginho expõe os cômodos da casa, os móveis, a alimentação, como são servidas as refeições, tudo de forma bastante simples.

   Além do quarto em que estamos e do outro em que está a Mamã, a nossa casa tem mais duas divisões: a sala de visitas e a sala de jantar. Esta última tem as paredes enegrecidas pelo fumo, porque dantes Mamã tinha ali o fogão, a um canto. É ocupada por uma mesa já despolida e sem estilo, rodeada por 7 cadeiras, uma de cada espécie, um armário em que alguém escreveu “Elvis”, e vários sacos no canto, atrás da porta. Às refeições, como não cabemos todos à mesa, a Gita e a Nelita sentam-se no chão, viradas uma para a outra [...] Ao meio fica o prato de alumínio [...] Invariavelmente o prato contém arroz e caril de amendoim [...]. (HONWANA, 1980, p.36-37).

Em uma de suas descrições do lar narra que existem livros que só interessam ao seu pai. As demais leituras eram de interesse, apenas, de sua mãe.

Nota-se que os livros ocupam um espaço de prestígio na casa a julgar pela cortina que os esconde:

Entre a porta que dá para a casa de banho e a que dá para este quarto, encostada à parede do Corredor, há uma estante com 5 prateleiras todas cheias de livros. Tem a cobri-la uma cortina feita dum pano idêntico ao do das cortinas da sala de visitas. As cortinas do quarto da Mamã são também do mesmo pano. Só neste quarto é que as cortinas são diferentes. São dum pano grosso e amarelado. A Tina diz que o pano é feio, mas quando o Papá esteve preso tirou 2 cortinas e com elas fez uma saia que não era parecida com nenhuma saia que eu me lembrasse ter visto. Eu acho que era feia. (HONWANA, 1980, p.38).

Enquanto Ginho faz o inventário, descrevendo a realidade da família, é possível perceber alguns sintomas que corroboram para a leitura do estado de “zumbi”.

A metáfora do zumbi vem a calhar com a situação pois, o zumbi é um homem “morto-vivo”, aquele “ao qual se retirou o espírito e a razão, deixando-lhe apenas a força para trabalhar”.

O estado de zumbi justifica-se diante da violência do poder colonial, mesmo não aceitando a colonização, o indígena percebe-se, momentaneamente, impotente, “como membro de uma comunidade sem história, sem sentido de Estado, sem valores éticos, sem economia, isto é, sem civilização”.

Além de inventariar a pobreza do lar, ele é o único que, como o pai, lê livros:

Debaixo desta cama está guardado o meu material de desenho e pintura, contido em dois caixotes de madeira. Há ainda mais três caixotes com livros. Debaixo da cama que está o Papá há mais caixotes com livros. As revistas estão distribuídas pelas 4 mesinhas de cabeceira dos dois quartos. As mais apresentáveis estão na sala de visitas, sobre a mesa de centro, sobre o aparador, sobre a máquina de costura e na mesinha do rádio. Se agora quisesse ler uma revista ia direitinho à mesa do centro, porque lá estão as “Lifes”, as “Times” e as “Cruzeiros” mais recentes. Na mesa do centro está também o “Reader’s”, mas talvez nem lhe tocasse porque parece que não é grande coisa. O Papá diz que é uma porcaria. Bem, mas para ele todas as revistas que a Mamã costuma pôr na sala de visitas são uma porcaria. É por isso que não tenho assim tanta vontade de sair da cama, embora não tenha sono nenhum. (HONWANA, 1980, p.38-39).

Nota-se que as revistas citadas pelo garoto, as de seu gosto, tratam-se de duas produções norte-americanas e uma brasileira. A que é de preferência de sua mãe é uma produção portuguesa. Ambas são rejeitadas pelo pai, o que pode figurar como uma recusa a tudo que se refere às potências colonizadoras – Inglaterra, Portugal.

Seu pai mantém as janelas fechadas levando-nos a ideia de morte em vida:

As portas e as janelas estão fechadas. O Papá não gosta de dormir com as portas e as janelas abertas não sei por quê. Pode-se pensar que é por causa da doença mas eu acho que ele foi sempre assim. Ele agora dorme no nosso quarto porque os médicos, quando lhe deram alta, recomendaram-lhe que dormisse numa cama dura, o que se improvisou no nosso quarto, já que não convinha mexer na cama de casal, no quarto dele. (HONWANA, 1980, p.36).

A mãe do garoto aparece, também, como um dos “assimilados” da província, uma vez que se comunica muito bem nas duas línguas, o ronga e o português – a de sua etnia e a do colonizador. Com os filhos, ela fala em português. Já com os subordinados, na machamba em que a família vive e trabalha, comunica-se em ronga. Percebe-se que se trata de uma mulher empoderada entre os seus iguais, dentro dos moldes do colonialismo, talvez por ser uma assimilada, tal qual seu marido e seu filho.

Entretanto, ao que parece, ela, diferente dos dois supracitados, pertence ao grupo dos “assimilados” aliados aos colonos. Possivelmente acredita numa vivência harmônica entre esses e os colonizados, mesmo tendo consciência da desigualdade e do racismo que permeia essa relação, em que o “indígena” é o lado mais fraco, em nome do relativo prestígio do qual goza o “assimilado”.

Com relação as fases de tomada de consciência, por parte do colonizado, como também na fase do agir desse sujeito massacrado pelo sistema colonial, percebe-se que o narrador nota a realidade de pobreza em que vive sua família, mas ainda – ao que nos parece – não consegue pensar numa solução para o problema e então não sente:

“Vontade de sair da cama, embora não tenha sono nenhum” (HONWANA, 1980, p.39).

A assimilação, nesse caso, é a única saída para o colonizado tornar-se sujeito, indivíduo. Infere-se que esse estágio de zumbificação em que se encontra a família do narrador, pode figurar como um interregno entre os dois momentos:

1. Momento em que o indígena recorre ao embranquecimento, como investimento para acessar a categoria de homem, o que envolvia autorrecusa, aceitação da colonização e admiração pelo branco, o que culmina em revolta e reações repreendidas violentamente pelo sistema;

2. Momento de recusa à assimilação e de retomada aos valores e tradições indígenas – quando o indígena entende que a autorrejeição é um investimento muito grande e, então, ele conclui que precisa romper com a colonização e lutar para transpor as barreiras sociais, implantadas pelo próprio sistema europeu.

- Além de, como os demais componentes da família, dormir um sono, aparentemente, perturbado, porque ressonam:

O Papá ressona. A Lolota e a Nelita na outra cama ressonam. A meu lado, aqui, debaixo do meu braço, o Nandito ressona também. Ontem, quando fui sorrateiramente abrir a porta, depois de deixar que os outros adormecessem bem, ouvi ressonar no outro quarto. Não sei se era a Mamã ou se era a Tina. Sim, acho que foi a Mamã, embora não tenha certeza. Será que também ressonarei quando adormecer? (HONWANA, 1980, p.36).

É importante salientar, contextualizando a obra e seu contexto histórico, que o momento a que a narrativa pode estar fazendo referência não era de conforto para o colonizado. Dentro do contexto de colonização, percebe-se um endurecimento do sistema, afinal Portugal vivia a Ditadura Nacional, o que levou novos comandos de opressão para suas colônias. Como dito anteriormente, o colonizado perdeu as vantagens sociais, que lhe eram asseguradas pelo Estatuto do Indigenato (abolido nos primeiros anos da década de 1960) e passou a viver, sem distinção entre indígenas e assimilados, explorados pelo trabalho.

Nesse caso, é válida uma leitura que situe esse estado de “morto-vivo”, esse ressonar da família do narrador, como um intervalo entre o primeiro momento de revolta, mas de pouca ação, devido a repressão; e o momento de entender a luta como uma saída possível para a mudança dessa realidade, por isso uma ação mais organizada e sistematizada.

 

terça-feira, 10 de junho de 2025

“PROSAS SEGUIDAS DE ODES MÍNIMAS”, de José Paulo Paes

 


Publicado em 1992, “Prosas seguidas de odes mínimas”, de José Paulo Paes, pertence ao 3º Tempo Modernista e é composto de duas partes contendo vinte textos em prosa poética e treze odes curtas (à exceção "A minha Perna").

O autor recorre nos títulos de poemas a uma nomenclatura da lírica tradicional: canção, noturno, balada, ode, e abordam aspectos memorialísticos, literários, existenciais e sociais, e têm a presença constante da esposa do autor, Dora.

A obra começa falando de morte e termina falando em nascimento, mostrando, ao que parece ser, uma experiência de separação.
O livro é uma mistura de temas que vão do lirismo à crítica política e fazem com que o leitor tenha uma ideia geral da obra. Por esses motivos é um dos livros mais completos. O autor repassa por toda sua trajetória e é como se tivesse a preocupação de lapidar novamente toda sua forma e estilo.

Em “Escolha de túmulo”, coloca o pós-morte como uma nova vida, um novo voo. Faz mais uma nova leitura em “Canção de exílio” do poema de Gonçalves Dias. Existe a presença da figura de seu pai no poema “Um retrato”, uma homenagem que também contém a morte como tema de reflexão. Esse mesmo tema encontra-se embutido no poema “Reencontro”, onde o autor se encontra em sonho com o teatrólogo Osman Lins, falecido anos atrás. O crédito de maior destaque pode ser dado ao poema: “À minha perna esquerda”. Trata-se de uma sequência de poemetos de características epigramáticas, num total de sete, onde conta sobre si mesmo de maneira tétrica e sarcástica sobre a perda de sua perna esquerda. É forte a intenção interpretativa que se embute no inevitável sacrifício. Nos poemas finais, tece uma quase crônica dos detalhes, sintetiza no cotidiano de objetos e lugares sua poética de forma condensada e rebuscada para dentro de si mesmo.

Contém nesta coletânea: “Escolha de túmulo”, “Noturno”, “Canção de exílio”, “Um retrato”, “Outro retrato”, “A casa”, “Iniciação”, “Nana para Glaura”, “Balancete”, “Reencontro”, “Balada do Belas-Artes”, “À minha perna esquerda”, “À bengala”, “Aos óculos”, “À tinta de escrever”, “Ao shopping center”, “Ao espelho”, “Ao alfinete” e “A um recém-nascido”.

É uma obra de caráter extremamente conciso, que remonta em alguns aspectos à literatura de Oswald de Andrade, como a paródia, o trocadilho, o humor, a poesia sintética, o espírito satírico. No entanto, o poeta não se aproxima apenas de Oswald de Andrade. Sente-se nele uma familiaridade com Drummond, principalmente no aspecto gauche de alguns poemas. Basta ler o texto "Canção do adolescente" transcrito abaixo:

Se mais bem olhardes
notareis que as rugas
umas são postiças
outras literárias.
Notareis ainda
o que mais escondo:
a descontinuidade
do meu corpo híbrido.
Quando corto a rua
para me ocultar
as mulheres riem
(sempre tão agudas!)
do meu corpo.
Que força macabra
misturou pedaços
de criança e homem
para me criar?
Se quereis salvar-me
desta anatomia,
batizai-me depressa
com as inefáveis
as assustadoras
águas do mundo.

Neste poema o eu-lírico se descreve como uma junção um tanto desajeitada do adolescente com o amadurecido, criando um híbrido dotado de uma anatomia que inspira compaixão ou riso. Mas o tom drummondiano também é percebido pelo cansaço com que enxerga a geração humana. E, assim como Drummond, o desencanto com a espécie humana não é suficiente para anular de maneira niilista o desejo por viver. É o que se vê abaixo, em “Mundo Novo”.

Como estás vendo, não valeu a pena tanto esforço:
a urgência na construção da Arca
o rigor na escolha dos sobreviventes
a monotonia da vida a bordo desde os primeiros dias
a carestia aceita com resmungos nos últimos dias
os olhos cansados de buscar um sol continuamente adiado.
E no entanto sabias de antemão que seria assim.
Sabias que a pomba iria trazer não um ramo de oliva mas de espinheiro.
Sabias e não disseste nada a nós, teus tripulantes,
que ora vês lavrando com as mesmas enxadas de Caim e Abel a terra mal enxuta do Dilúvio.
Aliás, se nos dissesses, nós não te acreditaríamos.

Veja que se assume o tom de “no entanto, prosseguimos animadamente vivendo” de algumas peças preciosas do Rosa do Povo, de Drummond, pois ocorre também a defesa da existência.

Além de vincular-se a Drummond, José Paulo Paes apresenta a mesma afetividade com que Bandeira recupera, por meio da memória, personagens do seu círculo familiar, principalmente as que povoaram sua infância. É o que pode ser visto, entre tantos exemplos, no texto abaixo, que resume as características das várias personagens descritas na obra, em poemas individualizados.

A CASA

Vendam logo esta casa, ela está cheia de fantasmas.
Na livraria, há um avô que faz cartões de boas-festas com corações de purpurina.
Na tipografia, um tio que imprime avisos fúnebres e programas de circo.
Na sala de visitas, um pai que lê romances policiais até o fim dos tempos.
No quarto, uma mãe que está sempre parindo a última filha.
Na sala de jantar, uma tia que lustra cuidadosamente o seu próprio caixão.
Na copa, uma prima que passa a ferro todas as mortalhas da família.
Na cozinha, uma avó que conta noite e dia histórias do outro mundo.
No quintal, um preto velho que morreu na Guerra do Paraguai rachando lenha.
E no telhado um menino medroso que espia todos eles; só que está vivo: trouxe até ali o pássaro dos sonhos.
Deixem o menino dormir, mas vendam a casa, vendam-na depressa.
Antes que ele acorde e se descubra também morto.

É interessante perceber que o estilo abreviado adotado pelo autor acaba por tornar todo o poema densamente carregado de significado. Tudo contribui para o sentido geral do texto. Basta notar as referências, explícitas ou implícitas, à ideia de morte em quase todas as personagens: “avisos fúnebres”, “romances policiais”, “caixão”, “mortalhas”, “outro mundo”, “morreu”. Olhar para o passado e relembrar figuras que não existem mais é ter consciência da passagem do tempo, o que implica a noção de envelhecimento e morte.

Outro aspecto importante e que constitui uma pista interpretativa bastante útil deixada pelo autor, é o fato de que a recuperação do seu passado é obtida graças à asa dos sonhos. Podem ser vistos aqui traços que prestar atenção ao caráter romântico (sonho, fantasia, emotividade) e algo entre simbolismo e surrealismo, principalmente este último.
José Paulo Paes detona um conjunto de imagens de relação absurda entre si, como que ditadas por um pensar em delírio e, portanto, livre das peias racionalistas. No entanto, é esse pássaro dos sonhos que lhe dá fôlego suficiente para ter, absurdamente ou não, uma visão ousadamente perfeita de nossa realidade.
Dentro ainda do campo do absurdo, deve-se lembrar que um esquema muito comum no poeta é a utilização das antíteses e principalmente paradoxos (figuras de linguagem ligadas à oposição) na expressão de sua realidade.
O que José Paulo Paes parece fazer é juntar elementos completamente contrários e por meio da forte tensão que se forma dessa união ganhar energia suficiente para que se enxergue mais eficientemente a realidade do que pela lógica racional (pode-se lembrar que tal procedimento era muito comum em Machado de Assis, que enxergava a realidade como algo dilemático. Mas se no autor realista essa elaboração se encaminhava para a fria análise da condição humana, em José Paulo Paes é lastreada por uma forte emotividade. É provável que haja mais familiaridade com o Barroco, famosa arte das oposições. No entanto, a sofisticação da linguagem da escola seiscentista, gerando textos que eram verdadeiras elucubrações, é bastante diferente do tom simples assumido em Prosas seguidas de odes mínimas).

É o que se vê, entre tantos casos, no trecho abaixo:

OUTRO RETRATO

O laço de fita
que prende os cabelos
da moça do retrato
mais parece uma borboleta.
Um ventinho qualquer
e sai voando
rumo a outra vida
além do retrato.
Uma vida onde os maridos
nunca chegam tarde
com um gosto amargo
na boca.

Deve-se observar que a ideia de laço, numa análise superficial, está ligada a prisão, opondo-se, portanto, a voo. No entanto, de forma surrealista, o nó corredio é facilmente associado a borboleta. Um estudo profundo revela que tal associação não é, porém, absurda, já que remonta à ideia de que todo retrato faz retomar um passado em que sonhos, desejos eram montados cheios de idealização. Dessa forma, o poema acaba por avaliar agudamente o presente, que se desviou grosseiramente das expectativas de um passado ingênuo.

Também é necessário lembrar que José Paulo Paes possui um ponto de contato com uma qualidade comum a Bandeira e Drummond: a emotividade retirada das coisas simples, cotidianas. Consegue da mesma forma que os dois pilares da poesia modernista, ter os mesmos passos de um cronista moderno, alçando vôos líricos altíssimos.

Assemelha-se ainda a João Cabral de Melo Neto nos seguintes aspectos: linguagem enxuta, densidade e materialidade verbal, fixação de elementos concretos, recortados em versos breves, lucidez vigilante, recusa do supérfluo e do sentimentalismo, rigor intelectual e a imaginação plástica, escassez de adjetivação e gosto pela rima toante.
Curioso é perceber que os trechos apresentados até agora, tratados como poemas, na realidade correspondem à primeira parte da obra, composta de “prosas”. Sua elaboração, no entanto, recebe um trato de linguagem tal que se aproximam por demais da poesia. Pode-se tratar, portanto, de um famoso gênero criado pelos simbolistas, o da prosa poética, já percorrido por Cruz e Sousa, Aníbal Machado e Rubem Braga.
Os poemas têm, tradicionalmente, um tom grandioso. No entanto, o poeta engrandece coisas simples, como um alfinete, um fósforo, uma garrafa ou até mesmo a tinta de escrever, como se vê a seguir

À TINTA DE ESCREVER

Ao teu azul fidalgo mortifica
registrar a notícia, escrever
o bilhete, assinar a promissória
esses filhos do momento. Sonhas
mais duradouro o pergaminho
onde pudesses, arte longa em vida breve
inscrever, vitríolo o epigrama, lágrima
a elegia, bronze a epopeia.
Mas já que o duradouro de hoje nem
espera a tinta do jornal secar,
firma, azul, a tua promissória
ao minuto e adeus que agora é tudo História.

Segundo Antonio Candido, há em José Paulo Paes uma predileção pelo pequeno, pelo mínimo, que lhe alimenta de fôlego suficiente para não só engrandecê-lo, mas também de buscar o gigantesco.