quinta-feira, 21 de abril de 2011

RAFAEL SANZIO: PRÍNCIPE DOS PINTORES RENASCENTISTAS

“Autorretrato”


Raffaello Sanzio, Raffaello Santi, Raffaello de Urbino ou Rafael Sanzio de Urbino nasceu em 6 de abril de 1483, em Urbino, na Itália. O duque de Urbino foi um grande entusiasta das artes e na época, transformou a cidade de Urbino em centro cultural do mundo o que atraiu diversos artistas, entre eles Donato Bramante, Piero della Francesca e Leone Battista Alberti.
Em 1500, Rafael já se destacava no mundo artístico renascentista.
A afirmativa confirma-se através das considerações de Dal Pogetto que em 1500, afirmou que: o universo pictórico de Rafael já era, “rico de experiências muito mais vastas e complexas que os exemplos estreitamente peruginescos, aos quais alguns gostariam de restringir sua formação”, acrescentando que “faz-se necessário pressupor o conhecimento, por parte de Rafael, de uma alternativa, ou seja, de uma arte tendente ao movimento, como a florentina.”
Transferiu-se, então, para Perúgia e através de Pietro Perugino, aprendeu a técnica do afresco e criou “O casamento da Virgem”, 1504.
Rafael, nessa obra, inspirou-se grandemente na obra de seu mestre Perugino, “Esponsais da Virgem” para a idealização e realização da mesma. No entanto, apresentam-se diferenças primordiais: Rafael optou pela circularidade em oposição ao horizontalismo quatrocentista de Perugino, além de um espaço mais aberto na obra de Rafael, o que indica um comando superior de perspectiva em relação á obra de seu mestre.
Esse mural foi encomendado pela família Albizzini para a capela de São José, na igreja de São Francisco das Minorias na “Cittá di Castello”, posteriormente, após várias transações, entre oficiais napoleônicos e negociadores de artes, fora adquirida pela Academia de Finas Artes, em Brera, Milão, no século XIX.

“O Casamento da Virgem”, 1504.


“O Casamento da Virgem” contextualiza a filosofia artística da época. O artista fez uso da perspectiva espacial e do contraste entre luz e sombra, aproximando-o de traços realitas.
No plano de fundo, Rafael inseriu o majestoso templo bramantino coincidindo com o centro ideal, denominado futuramente, por ponto de fuga, pelo qual atravessa uma linha horizontal que separa os dois planos, e juntamente com as rotas de fuga facilmente perceptíveis, permite a livre disposição das figuras menores e as maiores, as quais representam o elenco do matrimônio.
No plano frontal, José coloca o anel na mão da Virgem, assistido por um sacerdote que conduz a solenidade. Em sua mão esquerda, José segura um cajado com flores na haste, diferenciando-o dos outros não floridos. Alguns dos “súditos” que acompanham José permanecem sérios, enquanto um deles quebra o seu cajado.
Nessa época havia a predominância da ideia que, toda obra de arte continha uma forma de pensamento, um conteúdo informativo, pensamento crítico e simbólico, limitando, assim, a um pequeno círculo elitista de expectadores.
Em “O Casamento da Virgem” o simbolismo hermético encontra-se no cajado florido de José, indicando a sua divindade em relação aos demais personagens.
Nesse afresco as características renascentistas são evidentes como: a harmonia; o equilíbrio; a temática religiosa; a forma piramidal e triangular entre a Virgem, o Sacerdote e José, alegoria da “santíssima trindade”; a leveza ao compor figuras relativamente jovens e bastante expressivas, e o movimento aliado ao livre diálogo entre luz e sombra permitindo a composição do volume e textura das personagens e dos objetos na pintura.
Rafael utilizou-se das três cores primárias (vermelho, o azul e o amarelo) para a composição das vestes das personagens e do fundo. Além de priorizar a cor dourada na composição do templo e do pavimento, no qual as figuras do primeiro plano estão, a partir do anel de José, dispostas separadamente de cada lado e as figuras do segundo plano, conforme se aproximam do ponto de fuga se tornam menores, dando a impressão de distância real.
O pintor valeu-se da técnica do “sfumato” para retratar a porta ao fundo do templo exibindo o fundo azul com intenção de profundidade.
Rafael assina a obra no topo do templo: Raphael Urbinas MDIIII.
Em seguida, Rafael concluiu três pequenos quadros: “Visão de um Cavaleiro”, “As Três Graças” e “São Miguel”. Neles já se expunha o seu estilo amadurecido e o frescor que lhe acompanharia a vida toda.

“Visão de um cavaleiro”, 1504.
 
 
“As Três Graças”, 1503/4.


“São Miguel”, 1503/4.


Ainda em1504, Rafael seguiu a Florença, atraído pelas inovações artísticas que estavam sendo realizadas, no Palazzo della Signoria, por Leonardo da Vinci e Michelangelo.
Sob nova influência, sobretudo da obra de Da Vinci, substituiu seu estilo fundamentado na perspectiva e na composição geométrica por uma maneira informal, suave de pintar e na expressiva anatomia humana.
Nessa época, iniciou as diversas madonas, entre as quais a “Madona Esterházy” e “A bela jardineira” também, conhecida como “A Virgem com o Menino e com o pequeno São João Batista”, uma das três telas que o grande pintor renascentista dedicou à Madona e a seu Filho pequenino brincando com o primo João Batista. As outras duas são “A Virgem do Belvedere” e “A Virgem do Pintassilgo”.

“Madona Esterházy”, 1504.

 
“A bela jardineira”, 1507-1508.


“A Virgem do Belvedere”, 1506.


“A Virgem do Pintassilgo”, 1504-8


Por indicação de seu amigo e arquiteto do Vaticano, Bramante, Rafael foi chamado a Roma pelo papa Júlio II em 1508, para decorar com afrescos as salas do Vaticano e a biblioteca particular do Papa, hoje conhecidas como as “Stanzi de Raffaello”, onde trabalharam simultaneamente Rafael e Michelangelo.
O Papa Júlio II impressionou-se com os trabalhos do jovem Rafael e ordenou apagar várias obras de artistas mais antigos, inclusive algumas de Perugino, mestre de Rafael, para serem substituídas por suas obras, porém este se recusou em destruir as obras de seu antigo mestre.
Nos doze anos em que permaneceu na cidade, incumbiu-se de numerosos projetos de destaque, nos quais desenvolveu um estilo grandioso, demonstrando uma imaginação variada e extremamente criativa.
Dos afrescos do Vaticano, os mais importantes são a “Disputa” ou “Discussão do Santíssimo Sacramento”, de teor alegórico, simbolizando a verdade teológica, através da glória da Eucaristia adorada pela Igreja triunfante, no céu, e pela Igreja militante, na terra e a “Escola de Atenas”, retratando as ciências seculares da filosofia, ambos pintados na Stanza della Segnatura.

“Disputa”, 1509-10.


“Disputa” é o primeiro afresco concluído por Rafael para o Papa Júlio II. Nele, o artista criou uma cena que abrange o céu e a terra, representando o triunfo da religião e verdade espiritual.
Dessa forma, o mural pode ser visto como um retrato da Igreja atuante abaixo, e da Igreja triunfante acima.
A Hóstia consagrada é mostrada no centro do altar e centralizada na pintura e, ao lado, filósofos escolásticos discutem seu significado, enquanto a Santíssima Trindade, santos e anjos flutuam nas nuvens acima.
As figuras representando a Igreja triunfante e a Igreja atuante, retratados em dois semicírculos, um sobre o outro, adoram a Hóstia.
Acima, Cristo ressuscitado está sentado sobre o trono de nuvens entre a Virgem Maria, curvada em forma de adoração, e João Batista que, de acordo com a tradição iconográfica, aponta para Cristo e, várias figuras bíblicas do Antigo e Novo Testamento, como Adão, Moisés e Jacó. Estes estão sentados ao redor do grupo central sobre um banco semicircular de nuvens parecido ao que constitui o trono de Cristo.
Deus Pai fica acima de Jesus, representado reinando sobre a luz dourada do céu, banhado da glória celestial, abençoa o grupo de personagens bíblicos e eclesiásticos no topo da composição.
Ao fundo, inserida na vasta paisagem dominado pelo altar e o sacrifício eucarístico, estão os santos, papas, bispos, sacerdotes e o coro dos devotos. Eles representam a Igreja Atuante, e que continuará a atuar no mundo, e que contemplam a glória da Trindade com os olhos da alma. Seguindo quinze séculos de tradições, Rafael retratou personalidades famosas.

 
Entre as pessoas do grupo aparece Bramante, mentor de Rafael e famoso arquiteto renascentista, ensinando na balaustrada à esquerda; o jovem de pé próximo a ele foi identificado como Francesco Maria Della Rovere e retratado com a fisionomia parecida com a de Leonardo da Vinci; Savonarola; Platão, de costas, com um manto azul; Papa Júlio II, que personifica Gregório o Grande, sentado próximo do altar e o Papa Sisto IV, o Papa trajando-se de ouro no fundo da pintura. Diretamente atrás do Papa Sisto IV está Dante Alighieri visto à direita, vestindo vermelho e distinguido por uma coroa de louros, símbolo da sua grandeza como escritor.

Eles formam um tranquilo e silencioso grupo e, no entanto, são pintados com vigorosos tons coloridos e as figuras são altamente individualistas.
A estrutura do afresco é caracterizada por extrema claridade e simplicidade, que Rafael adquiriu através de esquetes, estudos e desenhos contendo notáveis diferenças na composição de trabalhos. Contudo, o layout, os gestos e as poses são originalidades das pesquisas de Rafael, que são ricas em admirável equilíbrio de cores e de grande dignidade expressiva.
Um estudo sobre a pintura mostra que a “Disputa” e “A Escola de Atenas” podem ser vistos como tendo algo em comum: a verdade revelada da origem de todas as coisas, em outras palavras, a Trindade. Isto pode não ser compreendido pelo intelecto somente (Filosofia), mas é comprovado na Eucaristia. No entanto, a “Escola de Atenas” é uma alegoria complexa do conhecimento filosófico profano.
Na “Stanza della Segnatura” (Sala da Assinatura), sala utilizada como biblioteca e onde Júlio II assinava os decretos da corte eclesiástica, foram pintados afrescos que representavam as quatro disciplinas fundamentais da cultura, isto é, a Teologia, a Filosofia, a Poesia e a Jurisprudência. Um dos episódios retratados nesta sala, que representa a ciência secular da Filosofia, é a famosa “A Escola de Atenas”.
Na cidade de Atenas, no ano 387 a.C., o filósofo e matemático grego Platão fundou uma academia de estudos científicos e filosóficos.
Essa academia tornou-se um dos mais importantes centros de pesquisa e ensino da Matemática e Filosofia da Antiguidade Clássica, tendo funcionado durante 900 anos, até ao seu encerramento definitivo pelos cristãos. No entanto, a Academia permaneceu sempre como um dos maiores símbolos da busca racional da verdade e, em especial, como um símbolo para os estudos matemáticos teóricos.
“A Escola de Atenas” é uma alegoria que representa a continuidade histórica do pensamento da Academia de Platão através de várias personalidades do mundo matemático e filosófico grego.

“A Escola de Atenas”, 1509-1510.

 
 
Nesta pintura, Rafael representou os maiores pensadores de todos os tempos, especialmente os da Grécia Antiga onde alguns deles estão personificados em homens famosos do renascimento. Platão é parecido com Leonardo da Vinci, Euclides com Bramante e Miguelângelo tem o aspecto de Heráclito. Talvez fosse uma maneira de Rafael ligar o passado ao presente e de prestar homenagem aos seus grandes contemporâneos:

1: Zenão de Cítio ou Zenão de Eléia
2: Epicuro
3: Frederico II, duque de Mântua e Montferrat
4: Anicius Manlius Severinus Boethius ou Anaximandro ou Empédocles
5: Averroes
6: Pitágoras
7: Alcibíades ou Alexandre, o Grande
8: Antístenes ou Xenofonte
9: Hipátia (Francesco Maria della Rovere or Raphael's mistress Margherita.)
10: Ésquines ou Xenofonte
11: Parménides
12: Sócrates
13: Heráclito (Miguelângelo)
14: Platão segurando o Timeu (Leonardo da Vinci)
15: Aristóteles segurando Ética a Nicômaco
16: Diógenes de Sínope
17: Plotino
18: Euclides ou Arquimedes acompanhado de estudantes (Bramante)
19: Estrabão ou Zoroastro (Baldassare Castiglione ou Pietro Bembo)
20: Ptolomeu R: Apeles (Rafael)
21: Protógenes (Il Sodoma ou Pietro Perugino).

Rafael desenhou a si mesmo no quadro Escola de Atenas

Pitágoras cercado por Empédocles (?),

Averroes, Hipatia e Parmênides


Aristóteles e Platão
 
 
Bramante e Euclides


“A Escola de Atenas” retratou as ciências seculares, dando ênfase à matemática em particular, ao número, à razão e à harmonia.
Aristóteles e Platão, dois grandes filósofos do mundo clássico são vistos em uma conversa no centro da imagem exatamente como se poderia imaginar um discurso acadêmico em curso na Grécia Antiga.
Platão, representando a filosofia abstrata e teórica, segura uma cópia do seu livro “Timeu” e aponta para o alto, fonte de sua inspiração, o mundo das formas ideais, o mundo inteligível.
Aristóteles, discípulo divergente de Platão, segura uma cópia do seu livro “Ética”, tem a mão na horizontal, em direção ao que o rodeia a indicar a sua preocupação com o mundo concreto, terrestre, material e sensível representando a filosofia natural e empírica. Provavelmente a intenção de Rafael era mostrar os diferentes caminhos do conhecimento.
Platão era um seguidor da doutrina da escola Pitagórica e, como tal, os estudos na sua escola davam grande ênfase aos números, principalmente no que diz respeito a questões de razões e harmonias. Sabendo isso, Rafael, no grupo dos geômetras, colocou Pitágoras à esquerda, como representante da Teoria da Harmonia, e Euclides à direita, representando a perfeição lógica da Geometria.
É importante ressaltar a impressão de profundidade e a beleza monumental das arcadas e estátuas. O seu valor artístico além de outras qualidades está em representar o amplo espaço arquitetônico e ordenar as figuras vestidas de romano com equilíbrio e simetria, traça uma arquitetura impossível para a época, a proposta era ser no século XVI, o que ocorreu na Antiguidade.
Após a morte do Papa Júlio II, em 1513, Rafael prosseguiu seus trabalhos sob a custódia do novo Papa, Leão X, até 1517.
Nesse tempo, Rafael criou decorações sacras e seculares para vários prédios, retratos, altares, desenhos para tapeçarias, design para pratos e até trabalhos cenográficos.
Alguns de seus trabalhos mais famosos desse período nasceram da amizade com que mantinha com um rico banqueiro de Siena, Agostino Chigi, que lhe encomendou o belíssimo afresco de “Galatea” para sua Villa Farnesina e as “Sibilas” na igreja de Santa Maria della Pace, junto com o projeto e a decoração da Capela de Chigi na igreja de Santa Maria del Popolo, em 1513.

“O triunfo de Galatea”, 1512.


"O triunfo de Galatea” é a evocação suprema do glorioso espírito da Antiguidade. Grande parte da beleza do rosto Galatea reside na sua sugestão de timidez e inocência, como se ela fosse totalmente inconscientes de seus encantos físicos. A composição é claramente construída a partir da interação de diagonais. Assim, a diagonal de emissão a partir do topo da seta para a esquerda, prolonga nas rédeas dos golfinhos, enquanto à seta da direita é direcionada para o corpo da ninfa do mar. A torção do corpo de Galatéia deriva de uma obra perdida de Leonardo da Vinci e serve para lembrar-nos a influência deste sobre o jovem artista. Retomando a temas da mitologia restitui as proporções, a organização do espaço e do esfumaçado.
Apesar da grandiosidade do empreendimento, cujas últimas partes foram deixadas principalmente por conta de seus discípulos, Rafael, que então se tornara o pintor da moda, assumiu ao mesmo tempo numerosas outras tarefas: criou retratos, altares, cartões para tapeçarias, cenários teatrais e projetos arquitetônicos de construções profanas e igrejas como a de Sant’Eligio degli Orefici. Tamanho era seu prestígio que, segundo o biógrafo Giorgio Vasari, Leão X chegou a pensar em fazê-lo cardeal.
Em 1514, com a morte de Bramante, Rafael foi nomeado para suceder-lhe como arquiteto do Vaticano e assumiu as obras em curso na basílica de São Pedro, onde substituiu a planta em cruz grega, ou radial, por outra mais simples, em cruz latina, ou longitudinal.
Competente pesquisador interessado na Antiguidade clássica, Rafael foi designado, em 1515, para supervisionar a preservação de preciosas inscrições latinas em mármore. Dois anos depois, foi nomeado encarregado geral de todas as antiguidades romanas, para o que executou um mapa arqueológico da cidade.
Sua última obra, a “Transfiguração”, encomendada em 1517, desvia-se da serenidade típica de seu estilo para prefigurar coordenadas de um novo mundo conflituoso com características barrocas.

“Transfiguração”, 1518/20.


Em 1519, Rafael projetou os cenários para a comédia “I suppositi”, de Ludovico Ariosto.
Coberto de honrarias, Rafael morreu em Roma em 6 de abril de 1520, no seu aniversário de 37 anos, apenas a algumas semanas depois de Leão X apontá-lo como cardeal, acometido por uma febre.
Seu corpo repousou por um tempo em uma das salas na qual ele havia demonstrado sua genialidade e foi honrado com um funeral público. A incansável mão da morte (nas palavras de seu biógrafo) pôs um limite em suas conquistas e privou o mundo de um benefício maior de seus talentos, na idade em que a maioria dos outros homens começa a ser útil.
Rafael foi enterrado no Pantheon, o mais honorável mausoléu na Itália. Em sua tumba foi colocada uma frase de Pietro Bembo em latim que diz:

“Aqui jaz Rafael, que fez temer à Natureza por si fosse derrotada, em sua vida, e, uma vez morto, que morresse consigo”.

As obras de Rafael podem ser vistas como pontos altos do que se designa como “Alta Pintura Renascentista”, em sua forma mais evoluída, uma nova abordagem à arte.
Uma pintura que não era mais o retrato simples de um evento, mas a tradução e interpretação da sua matéria em sua composição, o movimento do corpo agora era entendido como uma analogia para a animação do espírito ou as emoções. Tudo em sua arte visava equilíbrio harmonioso.
Nisto reside à contribuição significativa de Rafael para a pintura da Alta Renascença.

terça-feira, 19 de abril de 2011

GUSTAVE COURBET (1819-1877) E O REALISMO FRANCÊS

"O Desespero" (1845), autoretrato de Courbet

Quando lhe pediram que pintasse anjos, respondeu: “Nunca vi anjos. Se me mostrarem um, eu pinto.”


COURBET é considerado o criador do realismo social na pintura e o autor do seu termo.
Homem de grande pragmatismo veio de uma família aristocrática, o pai proletarizou os servos e doou terras ao Estado, enquanto que Courbet era socialista.
Revolucionário por natureza, ardente defensor dos pobres, participou da guerra franco-prussiana e, por causa de suas ideias liberais, chegou a ser exilado na Suíça.
Sua pintura é dotada de um sentimento de vitalidade natural ao abordar cenas do cotidiano, principalmente das classes populares. Sua obra manifesta especial simpatia pelos trabalhadores e membros mais pobres da sociedade.
Foi preso por seis meses por danificar um monumento napoleônico.
Detestava a teatralidade da arte acadêmica, bem como suas figuras monótonas ocupadas em tarefas cotidianas.

A pintura é essencialmente uma arte concreta e tem de ser aplicada às coisas reais e existentes”, disse ele e acrescentava que “tudo o que não aparece na retina está fora do domínio da pintura.”

Estudante extremamente dedicado, em 1944 Courbet já tinha elaborado um estilo próprio caracterizado pela grande vitalidade ao retratar cenas da natureza, e já isento do intelectualismo neoclássico e do sentimentalismo romântico. A seguir, ele abandona o pincel, inaugura uma nova técnica de pintura utilizando uma espátula de aço, com a qual generosamente empasta a tinta sobre a tela. Esta é mais uma das características que fazem de Courbet, um dos heróicos precursores da pintura moderna, qualidade que despertará intensa admiração de Cézanne.
Por essa época, Courbet já havia definido um método de criação próprio, instintivo e aberto a todo tipo de modificações. Quando começava um trabalho, não sabia ao certo como iria terminar.

O quadro se portará por si próprio”, dizia ele.

O artista considerava que tema, cor e composição nasciam espontaneamente durante o processo criativo. Courbet afirmava que “um pintor deve estar sempre preparado para reproduzir sua melhor tela a qualquer momento”.
Esse seu estilo, uma espécie de realismo primitivo, causava grande indignação entre os românticos, pois estes alegavam que seus quadros, com mulheres solidamente construídas e repletas de densidade, não eram passíveis de inspirar um poeta nem transformá-las em poema.
Suas telas não contavam uma história. Ao contrário, elas preocupavam-se somente em revelar um momento único, transitório, completo em si mesmo e auto-explicativo.
O ano de 1847 é essencial para sua formação como artista. Um momento decisivo não só pra ele, mas também para toda sua geração: é o ano da instauração da República, e Courbet participa ativamente das lutas nas barricadas. Sua melhor pintura nunca teria existido sem esse acontecimento político.
A Revolução de 1848 fez com que Courbet tomasse a decisão definitiva de sua arte em termos de participação ativa na realidade. Nessa época, o romantismo já não conseguia esconder seu aspecto conformista. Devido às suas contraditórias concepções políticas, e uma origem tipicamente pequeno-burguesa, desvinculada da realidade social do país, acabaram por não entender o que havia ocorrido em 1848, e ao testemunharem o despertar daquelas gigantescas massas operárias, e sua poderosa força social, os românticos sentiram-se acuados e tornaram-se abertamente conservadores.
Courbet ganhou a antipatia do público artístico do seu tempo com um realismo que ultrapassou de longe os limites das boas maneiras.
Seu antiintelectualismo; anticlericalismo; seu enfoque antisentimental; o não privilégio da figura feminina; sua paixão pela presença física, principalmente pelas classes trabalhadoras e sua convicção de que tudo o mais era uma evasão, uma fuga à verdade, converteram o pintor no mais atacado artista de seu tempo. Enquanto isso se reunia para compartilhar opiniões com seus amigos, entre eles o pintor e notável teórico anarquista Proudhon, o escritor Baudelaire e o irônico caricaturista Daumier.
De fato, os homens de seus quadros não expressam nenhuma emoção e mais parecem parte de uma paisagem do que seus personagens, retratados com uma profusão de pretos, ocres e marrons, banhados por uma pátina cinza.

"O Retorno da Feira de Flagey”, 1848, quadro que inaugura o realismo francês.


Suas mais belas obras são as paisagens, mas seu âmbito era vasto e incluiu natureza morta; nus; representação retratista monumental como em “Enterro em Ornans” (1850); cenas da vida rural apresentada com a grandiloquência e uma quantidade de grandes quadros celebrando a grandeza e a humanidade.

O “O Atelier do Artista” (1855) sintetiza seus interesses.

“Interior do meu ateliê – Uma Alegoria real resumindo sete anos de minha vida de artista” (1854-55).


Courbet, nessa tela, retrata as duas esferas de influência que afetaram sua arte: à esquerda estão às pessoas comuns, camponeses, caçadores furtivos e mendigos que são seus temas, a sua própria realidade e, à direita, representantes do mundo artístico - Zolà de barba e Baudelaire lendo.
No centro, encontra-se uma criança admirada e uma modelo nua.
É importante notar que a modelo nua não está sendo retratada no quadro que o artista está trabalhando e cuja presença no estúdio repleto de gente, era uma afronta à decência. O próprio pintor está sentado concluindo uma paisagem com belos gestos líricos.
O ponto local é um autorretrato do artista produzindo outro quadro. Sua posição pivô em meio aos dois mundos implica que o artista é algo como que um intermediário, ligando o mundo real ao mundo da arte.

 
Courbet concluiu que a pintura tinha exigências próprias. O pintor nunca gostou dos arranjos convencionais com figuras cuidadosamente inseridas numa disposição ilusória. Unindo seus conhecimentos de equilíbrio e unidade total da tela, o artista conseguiu criar uma composição inovadora utilizando-se de sua habilidade no tratamento da luz e da sombra, além de um apurado estudo estrutural para unificar um aparentemente acidental e irrefletido agrupamento de pessoas.

Este sem dúvida foi o quadro mais ambicioso de Courbet e sua declaração de independência e seu maior testamento.
Trata-se de uma pintura processual (quando mostra o seu ateliê, ele não deveria se mostrar, mas, está trabalhando lá, com outra pintura e não olha para o espectador).
Há também a presença de um gato e o ambiente é opressivo remetendo a uma crítica ao Salão.
Quando um júri de arte recusou-se a exibir essa obra do pintor, Courbet construiu um barracão (dessa forma, indiretamente, inaugurou o mercado de arte, as galerias) particular, chamado “Pavilhão do Realismo de Courbet”, cobrou ingresso e foi o primeiro espetáculo solo que já houve.

“Enterro em Ornans”, 1849.


Trata-se de uma tela de 6,6 m de comprimento por 2,00 m de altura. O artista retrata um funeral de uma pessoa comum, na província de Ornans, cidade natal do artista, em tons terrosos frios. Nunca uma pintura realista realizada em escala histórica pelo tamanho, representou a realidade proletária, reservada somente para obras históricas grandiosas. Os críticos criticaram afirmando que era tristemente vulgar.
A pintura não apresenta perspectiva, técnica para representar o espaço e objetos tridimensionais numa superfície plana; a profundidade é gerada pelas montanhas e ao mesmo tempo, quebrada pela cruz e não se encontra num plano espacional.
As pessoas retratadas perdem a sua individualidade, são massificadas, uniformizadas, iguais, como representantes de um coletivo: a camada social a que pertencem.
O cachorro é a primeira imagem que chama a atenção. Ele não tem raça, é um viralata, um cachorro “qualquer” como as pessoas retratadas, remetendo a um mundo de pobreza e banalidade.
O tamanho da cova é diminuto como se o defunto fosse insignificante e só é notado, com o auxílio do título da tela, caso contrário passaria despercebida.
Com a paleta suja, sem plano e pouca cor (o que não é preto é castanho, exceto a cor das batinas dos religiosos), Courbet provou que para mostrar a realidade não podia utilizar-se de técnicas conservadoras-tradicionais, tinha que ser inovador e revolucionário; pois, a forma é compatível com o conteúdo.
Na época, Courbet foi perseguido por uma série de calúnias ao seu respeito e a reputação de “pintor de vulgaridades” o acompanhou por toda a vida.
Contam-se histórias de que em alguns cafés parisienses frequentados por artistas, eram exibidos cartazes que proibiam que discutissem as pinturas de Courbet, ou que em uma exposição num Salão de Outono, Luis Napoleão, em fúria, chicoteou um de seus quadros taxando-o de imoral.

"Os Britadores de Pedra”, 1850.


A primeira tela que exprime plenamente o seu realismo pragmático, "Os Britadores de Pedra", foi ironicamente destruída em 1945, quando dos bombardeamentos aliados à cidade de Dresden.
Sobre a obra diz-se que Courbet encontrou dois trabalhadores numa estrada e pediu-lhes que posassem no seu atelier. Pintou-os de tamanho natural, de forma objetiva e desafetada.
O rosto do rapaz está voltado, não permitindo ver suas feições, enquanto a do velho permanece meio oculta pelo chapéu. Ambos agem no movimento resultante da sua atividade, dando assim, uma sensação de movimento suave e cansado. Todavia a escolha das personagens não pode ter sido feita de um modo aleatório: o contraste de idades é significativo - um demasiado velho para a tarefa e, o outro, demasiado jovem. Pode-se até induzir certo determinismo dramático - o futuro reservado ao jovem é retratado em seu velho companheiro.
No entanto, estas interpretações são exteriores à obra, isto é, subjetivas, pois que não partem do artista, mas sim do observador. O que esta obra retrata são duas figuras desempenhando a sua atividade, isentas de uma especial dignidade ou susceptíveis de compaixão. É este o Realismo puro e cru, que encerra a proposta de Courbet e, ainda hoje tão mal entendido, fortemente criticado pela trivialidade e falta de conteúdo espiritual.

“Moças peneirando trigo” (1853-1854).


As personagens desse quadro são representadas de maneira quase fotográfica, como se o pintor flagrasse um instantâneo. Elas estão absortas em suas tarefas; não olham para frente; demonstram cansaço e rotina e, misturam-se com a matéria prima.
A cena retratada é prosaica, reflete sobre a exploração da mão de obra e como o trabalho desgasta as pessoas.
Por volta de 1860-1870, o realismo de Courbet foi se distanciando e deu lugar a uma pintura de formas voluptuosas e conteúdo erótico, de figuras femininas no estilo de Ingres, mas mais descarnadas.

"Indolência e Sensualidade", ou "Mulheres Dormindo" (1866).
 
"Mulher Entre as Ondas", 1867.


Na obra “Mulher entre as ondas” via-se uma camponesa robusta que emergia nua de um lago. A polêmica estaria no fato da jovem ser uma figura popular, suada, retirada da realidade e sem o menor vestígio de embelezamento idealizante. Uma visão diferenciada dos padrões de pintura erótica da época, onde se retratava musas encobertas por um véu de exotismo. A mulher entre as ondas não era uma escrava romana, nem uma dançarina árabe e muito menos uma ninfa grega. Este é justamente o ponto central da polêmica em torno da obra de Courbet. Sua adesão a um realismo brutal, disposto a não fazer concessões ao retrato fiel da realidade escandalizou a burguesia de sua época e causou horror entre o público acostumado aos padrões estéticos românticos.
É nesta mesma época que realiza a polêmica obra “A Origem do Mundo”, pintura executada a pedido de um diplomata turco que colecionava imagens eróticas. O quadro ao representar frontalmente as coxas e o sexo de uma mulher abalou profundamente o meio artístico da época.
O quadro foi pendurado no apartamento dele em Paris, escondido atrás de uma cortina para não constranger seus convidados. A pintura, apesar de ter sido vista por poucas pessoas, se tornou um dos quadros mais célebres do século XIX devido ao seu escandaloso tema central, sem precedentes na história da arte, tendo uma vulva no centro da composição, e desprezando-se completamente qualquer outro elemento no quadro.
“A Origem do Mundo” foi então comprada por um antiquário, passando de mão em mão até ao seu último dono, o célebre psicanalista francês Jacques Lacan. Após a sua morte, a família doou-o ao Museu d'Orsay, onde se encontra presentemente.
O quadro causa constrangimento ao observador, pois à época do academicismo, o nu era retratado de forma indireta, idealizada ou mistificada.
Courbet, dessa forma, desafia o conservadorismo artístico e liberta a arte à modernidade.
Courbet durante muito tempo acreditou que o realismo fosse o ponto final do desenvolvimento das artes. Acreditava não haver mais terreno para os pintores alegóricos de passagens bíblicas, mitológicas, ou históricas, pois para ele, o único tema possível na arte era o retrato fiel das pessoas anônimas, objetos vulgares, e cenas cotidianas da vida. Assim como seus colegas, negou o lugar da imaginação na arte, afirmando que “um artista só é capaz de reproduzir o que puder ver e apalpar, e deve tentar fazê-lo tão simples e objetivamente quanto possível”. Apesar de suas convicções no realismo, na fase final de sua carreira, ele irá perceber, assim como seus sucessores, sobretudo Monet e Cezanne, que a realidade não se encerrava simplesmente em seus preceitos realistas, e irá começar a explorar a natureza da percepção, o efêmero, a passagem de tempo, e a maneira como representar essa impressão visual pictoricamente. Esses experimentos da trajetória final de sua carreira garantiram seu lugar como um dos principais precursores do impressionismo.

"Penhascos em Etretat", 1870.


Courbet morre no exílio, vítima de cirrose hepática, em dezembro de 1877. Pouco antes de sua morte, o pintor havia escrito em carta para um amigo:

“Só espero realizar um milagre: viver toda minha vida para minha arte, sem me afastar de meus princípios, sem ter por um só instante mentido à minha consciência, e sem ter nunca executado um palmo de pintura para agradar a alguém ou para vender”.









sábado, 9 de abril de 2011

VAN GOGH: PÓS IMPRESSIONISMO

1853-1890


Um dos pioneiros da arte moderna, o holandês Vincent Van Gogh (1853-1890) tem entre suas marcas o traço visível da pincelada e o uso de cores vibrantes, que contrastam com o realismo do academismo até então vigente. Um dos pintores com maior reconhecimento na atualidade, o artista suicidou-se sem ver o seu trabalho reconhecido, tendo vendido apenas um dos seus 879 quadros.”


Prefiro morrer de paixão a morrer de tédio” e especulado sobre a imortalidade, VAN GOGH afirmou: “um pintor tem que pintar. Talvez exista alguma coisa depois disso.”


Ame o que você ama”, VAN GOGH


VAN GOGH foi um homem apaixonado, mas pela humanidade, não por si mesmo. Ele era própria paixão.

“Existe alguma coisa em mim que pode ser útil, mas o quê?”

Como seus esforços para servir aos outros tinham sido rejeitados, decidiu cumprir através da arte sua missão, como o único meio que lhe restava.

“Quero chegar tão longe em minhas obras a ponto de as pessoas afirmarem: ele sente de maneira profunda, terna.”


VICENT van GOGH, filho de Theodorus van Gogh, pastor calvinista e de Anna Cornelius Carbentus, nasceu em 30 de março de 1853 em Groot Zundert, pequeno povoado da região holandesa de Brabante.

Em seus primeiros estudos, foi um aluno com comportamentos e rendimentos satisfatórios e adquiriu o gosto pela leitura, principalmente por romances sobre camponeses e perseguidos, que manteve ao longo da vida e que lhe proporcionou ampla cultura e interesse pela pobreza e pelo sofrimento dos homens.
Vicente e seu irmão Theo ingressaram na empresa francesa Goupil, especializada na venda de gravuras. O estabelecimento havia sido fundado por seu tio Cent antes de ser incorporado pela famosa casa francesa.
O cargo de aprendiz proporcionou-lhe novas experiências e oportunidades de carreira: foi transferido para Bruxelas, depois para Londres e, finalmente, Paris.
Em Londres, apaixonou-se por Eugénie Loyer e foi sua primeira frustração amorosa.
Em Paris, interessou-se por religião e foi demitido por falta de interesse e comprometimento.
Trabalhou em uma escola na Grã-Bretanha, depois em uma livraria e começou a ler a Bíblia fervorosamente, o que levou a se tornar pastor.
Passou por Amsterdã, Borinage, na Bélgica, em Pâturages, Wasmes e Cuesmes. Entregou-se de corpo e alma, por dois anos, em defesa dos mais humildes, vivendo privado de qualquer conforto material e alimentando-se somente de pão e água, para se identificar com as pessoas mais carentes. A sua dedicação integral preocupou seus superiores e a permissão de pregar não foi renovada.
Ninguém compreendeu que ele não queria contrariar a ordem religiosa, mas que estava entregando-se com paixão em que acreditava.
Van Gogh, em 1880 escreve a Theo uma longa carta e ingressa na Escola de Belas Artes. Nessa época, Van Gogh dedicou-se á pintura os estudos de anatomia e fez a releitura de figuras de outros artistas, principalmente de Millet.

“Involuntariamente me converti na família numa espécie de personagem impossível e suspeito; seja como for, alguém que não merece confiança. Minha única preocupação é: como posso ser útil no mundo?”

Decidiu, então, dedicar-se à arte, que podia desenvolver de maneira solitária e justificava-se que esse valor seria como uma missão religiosa:

“Trate de compreender a última palavra do que dizem as obras de arte, os grandes artistas, os mestres mais sérios, e verá Deus ali dentro. [...] Agora, uma das causas pelas quais estou fora de lugar – durante anos tenho estado deslocado – é simplesmente porque tenho outras ideias, diferentes das desses senhores que privilegiam os sujeitos que pensam como eles. Não é uma questão simples. É mais séria, asseguro-lhe”.


Na época Van Gogh travou amizade com Anthon Ridder van Rappard, jovem pintor com quem trocou várias cartas.
Em 1881 em Etten, retratou as pessoas do campo, as mulheres em tarefas caseiras, a natureza e os menos afortunados com retratos da vida das classes trabalhadoras, procurando expressá-las exteriormente e interiormente.
Van Gogh foi a Haia na tentativa de apresentar suas produções. Conheceu Clasina Maria Hoornik, conhecida como Sien, ex-modelo e grávida.
O artista acolheu Sien e seu filho em seu ateliê, mas sua situação financeira não era suficiente para sustentar três pessoas e o estúdio. Mesmo tendo o apoio de seu irmão Theo e mais um filho, ela o abandonou quando este lhe propôs viver no campo.
Em 1882 Van Gogh compôs a litografia “Tristeza”.
Entre 1883 e 1885 em Nuenen, Van Gogh pintou mais de 200 obras. Foi um período dedicado ao estudo profundo da cor, observada nos clássicos holandeses.
Sua vida desregrada e indecente chocou a família e o pequeno povoado. Dava aulas de pinturas e orientava seus alunos a não retocarem seus trabalhos.
Na época já podia perceber em Van Gogh a rapidez de execução que se tornaria uma de suas características marcantes.
Em 1885, seu pai faleceu e em suas obras fazem alusão ao fato, principalmente, em “Natureza morta com a Bíblia” que apresenta uma solene Bíblia aberta junto a um romance de Zola, um confronto entre o pai e o filho; a tradição e a modernidade; Deus e o homem.
Ainda em 1885 pintou uma de suas obras-primas “Os comedores de batatas”, que marcará a sua transição entre seu aprendizado e o profissional e, entre o domínio dos tons escuros e os claros.

“Os comedores de batatas”, 1885


Diversos elementos desta obra mostram a preocupação do artista com as condições de vida dos trabalhadores em minas de carvão: as cores escuras da cena, iluminada apenas por um lampião; o rosto sem alegria das personagens; as mãos das personagens que refletem o trabalho pesado em que os mineiros executam; a refeição reduzida a batatas e alguma bebida e o ambiente pobre. Era a primeira versão do mais complexo quadro em rostos e um dos mais conhecidos. A tela resume à perfeição tanto as conquistas técnicas de Van Gogh como os sentimentos vividos até aquele momento.

“Quis dedicar-me conscientemente a expressar a ideia de que essa gente que, sob essa luz, come suas batatas com as mãos também trabalhou na terra. Meu trabalho exalta, portanto, o trabalho manual e o alimento que eles mesmos ganharam tão honestamente.”

Era um modo de Van Gogh proclamar o sentido social da pintura e seu desejo de compartilhar o sofrimento alheio. Essa obra fecha com brilhantismo a sua fase holandesa.
O desinteresse de sua família por sua arte, exceto pelo irmão Theo, era tal que, durante a mudança de Nuenen, perderam-se centenas de desenhos e pinturas a óleo.
Quando ficou claro que Van Gogh não conseguiria se sustentar com uma profissão convencional, Theo passou a ser sua única fonte financeira.
Van Gogh instalou-se por um período breve na Antuérpia, porém qualitativa para sua evolução pictórica. Lá, teve contato com as xilogravuras japonesas, que passou a colecionar e que influíram no traço, na composição e na cor. Além, do seu reencontro com Rembrandt, Frans Hals e Rubens.
Em 1886, depois de ter sido rejeitado pela Academia de Belas Artes de Antuérpia, partiu para Paris e fez amizade com Toulouse-Lautrec e Émile Bernard, com quem compartilhou um ateliê em Asnières. Além de conhecer muitos artistas, entre eles, Pissarro, Gauguin, Signac, Anquetin, Seurat, Cézanne, Suzanne Valadon.
Dessa forma, Van Gogh teve contato direto com o impressionismo e o pontilhismo que conhecia pelas revistas, e os pintores que antes admirava tornaram-se seus amigos.
Nessa época, o artista materializou sua paixão pela arte japonesa e expôs seus quadros no restaurante Le Tambourin.
Em Paris, Van Gogh retratou “Père” Tanguy, um vendedor de materiais de pintura que negociava seus produtos pelas telas sem valor na época, dos jovens artistas.

“Père” Tanguy, 1887.


Van Gogh produziu quatro retratos de Julien Tanguy, conhecido como “Père” Tanguy: o primeiro, uma pintura a óleo, feito em janeiro de 1887; os outros, dois óleos e um desenho, no final do mesmo ano.
Tanguy foi uma personagem singular. Dedicava-se à venda ambulante de tintas aos pintores de Montmartre até abrir uma pequena loja na rua Clauzel. Era um socialista utópico e um incondicional protetor dos artistas que não podiam pagar por suas telas e tintas.
Van Gogy frequentava a Rua Clauzel, conversava com o atendente e levava grandes quantidades de tinta de que precisava. Ali conheceu diversos artistas, como Émile Bernard, com quem estabeleceu profunda amizade e Paul Cézanne, com quem discutiu suas teorias e quem, ao ver seus retratos, suas naturezas-mortas e suas paisagens, disse-lhe: “Você, sinceramente, faz uma pintura de louco.”
Nessa obra, Tanguy é mostrado em posição frontal, com as mãos cruzadas sobre o colo, como se fosse para atribuir-lhe um aspecto de monge budista, propósito para o qual também contribui o fundo repleto de gravuras japonesas, provavelmente de sua coleção, reproduzidas em tamanho quase natural.
O artista reinterpretou as estampas, porque tratou do tema a sua maneira e modificou as cores originais. Assim, sobrepujou a luminosidade e o colorido das gravuras japonesas, bem como ultrapassou a teoria das misturas ópticas de Chevreul, que os impressionistas haviam popularizado.
Van Gogh começou a desenvolver, sem restrições, seu sentido inato da cor, que se manifestou apaixonadamente nesse retrato.
O obscurantismo de sua pintura feita na Holanda e na Bélgica era parte do passado.
Desse retrato fez um desenho no verso de um cardápio do restaurante Chalet, da Avenida Clichy. Esse retrato a lápis parece que não foi feito no próprio restaurante, mas em seu ateliê e, assim como o grande retrato a óleo, afasta-se do realismo minucioso pela força do traço e da cor.
A relação com Agostina Segatori, proprietária do Le Tambourin, retratada em “A italiana”, rendeu uma associação artística dos jovens pintores da época, apesar da duvidosa reputação do local.

“A italiana”, 1887.


Agostina Segatori, de origem italiana, vivia em Paris e posava como modelo para diversos pintores. Apaixonado por ela, Van Gogh tornou-se frequentador do estabelecimento, ainda que para muitos fosse um lugar pouco recomendável, expôs no local uma parte de sua coleção de estampas japonesas e pendurou ali suas obras e as de seus amigos.
O quadro, talvez pintado a partir de suas lembranças, apresentou-a como ele mais gostava de fazer os retratos: procurando mais a particularidade da personagem do que o indivíduo. Resulta daí o tipo de traje e a falta de precisão nas feições da modelo.
A estrutura compositiva é muito simples: uma mulher sentada, posicionada de frente, com as mãos cruzadas sobre as pernas; à esquerda aparecem dois apoios da cadeira, apenas o imprescindível para transmitir a sensação de que está sentada; fundo liso; na parte superior e à direita da obra, uma moldura de linhas perpendiculares e horizontais; um traço laranja encerra a borda inferior.
A novidade dessa obra de Van Gogh fundamenta-se na tendência à pintura plana, à moda das estampas japonesas. Essa técnica produz efeitos discrepantes: não se sabe se a mulher apóia as mãos na saia ou em outro tecido, sobre o qual repousam duas flores que estão seguras pela mão direita.
A pincelada é rápida, curta e linear; as cores, complementares. Por todas essas características, a obra brinca com a expressividade da cor e com o impacto.

“Vim ao sul por milhares de razões. Precisava ver uma luz diferente. Creio que, ao contemplar a natureza sob um céu mais brilhante, serei capaz de ter uma ideia mais verdadeira do modo como os japoneses sentem e desenham.”

Com o passar do tempo, Van Gogh passou a implicar-se com Theo acusando-o de representante da burguesia opressora, por ser comerciante de arte.
Este descontentamento refletia que Paris já não o satisfazia. Foi quando deu início à temática dos girassóis, afastou-se dos tons cinzentos e sombrios e do realismo social e, substitui-as por cores vivas e cenas paisagísticas. Para isso, precisava de um ambiente bucólico e luminosidade.
Afirmou que “as telas dizem o que não pode ser dito em palavras”.

“Dois girassóis cortados”, 1887.


Van Gogh é conhecido como o pintor dos girassóis. Os dois girassóis deste quadro pertencem a esta última série e apresentam-se num simples e violento contraste de cores complementares, o azul e o amarelo-alaranjado. Embora o tema dos girassóis tenha sido abordado anteriormente por outros autores, Van Gogh soube imprimir-lhe uma visão e uma força especiais. Por sua insólita composição foram comparadas com a série de cinco ninhos que fizera em Nuenen dois anos antes. As semelhanças não são apenas formais, mas conceituais, já que os girassóis simbolizam fecundidade, vida e nostalgia.
A série de quatro pinturas a óleo anuncia a superação do pontilhismo e o avanço para o simbolismo e o expressionismo de suas fases posteriores.
Em 1888, Van Gogh chegou à Arles. A cidade provinciana representaria, ao mesmo tempo, a maturidade do artista e o começo do fim, em virtude da intransigente incompreensão que sua conduta, livre de preconceitos, sempre ocasionou.
Se, em Paris, Van Gogh tinha descoberto a cor, em Arles, descobriu a luz: o ouro-bronze, o ouro-velho, os azuis, as violetas e os amarelos.

“Uma luz que, na falta de palavra melhor, não posso denominá-la de outro modo, senão amarela.”

“Os girassóis”, 1888.


Van Gogh pintou “Os girassóis” de Arles para decorar sua casa ateliê. A intenção era preparar o ambiente para receber o amigo Gauguin, sabia que esse tema o agradava e o pendurou no quarto de hóspedes.
O projeto inicial consistia em produzir um conjunto de obras sob o mesmo tema, o que o deixava entusiasmado. A motivação era explicada pela proximidade da presença de Gauguin, com quem imaginava inaugurar uma comunidade de artistas nos moldes de uma cooperativa. Por fim, acabou por pintar somente quatro, com três, cinco, 12 e 14 girassóis. Dentre eles, considerou bons, apenas dois, que levaram sua assinatura.
Os girassóis eram pintados com apenas uma gama de cor, o amarelo: uma gama de sutis matizes, com algumas linhas vermelhas e azuis, muito finas. O pintor acreditava que havia conseguido dar um passo importante no que se refere a aspectos tonais, conquista comparável à de Vermeer de Delft.

“Para atingir esse elevado tom de amarelo a que cheguei neste verão, tive de superar limites.”

Essa extraordinária pintura a óleo dá a impressão de ser monocromática e, portanto, a textura transmite uma vibração sem repouso à superfície e busca os contornos da mistura de frutas douradas. A pintura fascina por sua gama de cores, do salmão ao oliva, quase todas derivadas do amarelo.
“Eu tenho um pouco de girassol”, dizia Van Gogh, que também conferia um valor simbólico a essas fecundas flores. Para o pintor, o amarelo representava a amizade e a esperança e a forma das flores se abrirem, simbolizava a gratidão.
Apesar de o fundo da tela parecer uniforme, Van Gogh criou uma trama de grossas e amplas pinceladas verticais e horizontais entrelaçadas.
Utilizando a impressão do pincel, Van Gogh conseguiu uma densa trama que reproduziu ás cabeças dos girassóis carregadas de sementes.
Embora, carregada de tinta, é mais fluida nas folhas, nos caules, nos cálices e nas corolas das flores.
A assinatura, clara e muito visível, ocupando um lugar central, revela a satisfação do autor com sua obra.

“Dada á ausência de modelo, comprei um espelho bastante bom para poder trabalhar meu rosto, porque se posso pintar a coloração da própria cabeça, o que não deixa de apresentar certa dificuldade, poderei muito bem pintar as cabeças de outros bons homens e boas mulheres.”

Esse exercício em si mesmo encobria, de fato, a falta de meios para pagar modelos e não um exercício egocêntrico.
Van Gogh pintou esse autorretrato em setembro de 1888. Na tela está inscrita a seguinte dedicatória: “A mon ami Paul G.”
Quando o artista se refere a ele, fala de um autorretrato, embora tenha exagerado no pardo até o púrpura que contorna a jaqueta em azul. A cabeça aparece recortada sobre um fundo claro e quase sem sombras. O maior destaque da obra, no entanto, é o fato de apresentar olhos amendoados à feição japonesa, não em consequência da influência das estampas japonesas, mas para atender ao próprio desejo de agradar o amigo Gauguin.

“Autorretrato dedicado a Gauguin”, 1888.


Da luminosidade das noites provençais repletas de estrelas surgiram obras fantásticas como: “Terraço do café na Praça do Fórum”, “Noite estrelada sobre o Ródano”, entre outras obras.

“Terraço do café na Praça do Fórum”, 1888.


“Com frequência penso que a noite é mais viva e mais rica em cores do que durante o dia.”

“Noite estrelada sobre o Ródano”, 1888.


“A casa amarela” além de um quadro singular foi o seu lar no sul e a concretização de seu sonho de criar uma comunidade de artistas, um espaço para discutir, sugerir e compartilhar sobre arte.

“A casa amarela”, 1888.


Van Gogh dividiu esta tela em três áreas de luz. O primeiro plano é amarelo com matizes verdes, vermelhas e rosas; o centro é amarelo com verde-escuro, vermelho e verde-claro; e a parte superior, o céu, é cobalto-escuro. O amarelo mais claro é o da casa. Há uma inversão de valores em relação ao habitual nos quadros, com a parte superior mais escura e a parte inferior com maior luminosidade.
Ainda que Van Gogh tenha introduzido personagens nesta obra, o quadro gera a mesma sensação de solidão que outras telas do artista.
A chegada de Gauguin criou expectativas para a comunidade. Porém, a sua ida a Arles estava vinculada a um compromisso com Theo: ficar ao lado de Van Gogh em troca de Theo divulgar e vender suas obras.

“A cadeira de Gauguin” ou “Sua cadeira vazia”, 1888.

“A cadeira de Van Gogh”, 1888.


Entre novembro de 1888 e janeiro de 1889, Van Gogh pintou “uma cadeira de madeira e palha toda amarela sobre tijolos vermelhos, contra uma parede (de dia). Depois a cadeira de Gauguin, vermelha e verde; efeito de noite, parede e piso vermelho e verde também...”
Dessa forma, Van Gogh introduz um tema novo na pintura – a cadeira -, o que a coloca entre a natureza-morta e um quadro interior de fundo realista.
As duas telas são de extrema simplicidade: as cadeiras sobre o chão vazio sustentam objetos de uso doméstico: a de Van Gogh, um cachimbo e um pequeno monte de fumo; a de Gauguin, um castiçal com a vela acesa e dois livros.
As notáveis diferenças cromáticas de fabricação entre as cadeiras de Van Gogh e de Gauguin deram razão a muitas interpretações. A de Vincent simbolizaria a simplicidade campesina e a de Gauguin, o ambiente mundano e urbano.

“Sapatos”, 1888.


O espírito prático de Gauguin esbarrou com a sensibilidade de Van Gogh e o sonho da casa amarela desmoronou.
Em Arles conheceu a família Roulin com quem travou laços de afeto.
Joseph Roulin trabalhava como carteiro em Arles e seu espírito anárquico pulsava com a mesma intensidade do de Vincent. Mesmo depois de sua partida para Marselha, Van Gogh manteve contato com a família retratando-os em “O carteiro de Roulin” e em outros quadros.

“O carteiro Roulin”, 1888.


“Tem uma cabeça como a de Sócrates, quase sem nariz, uma fronte ampla, pequenos olhos cor cinza, bochechas cheias de uma cor inflamada, uma barba esplêndida e grisalha desde ás grande orelhas e é calvo.”

O pintor o retratou sentado, vestido com seu traje de trabalho azul, com botões dourados. O fundo também é azul, a barba, verde e pouco se vê da cadeira e da mesa onde apóia o braço esquerdo. Na verdade, Van Gogh produziu uma obra com diferentes tonalidades de azul, procurando imitar Frans Hals, que tanto lhe tinha impressionado em Amsterdã por sua capacidade de trabalhar numa só gama de cor.
Aqui, os tons claros e as sombras do azul do traje, pontuado pelo amarelo dos botões, são os elementos mais sugestivos da obra, que foi pintada em uma semana. Em consequência, Arles o livrou definitivamente das teorias impressionistas, e Van Gogh pode retornar a si mesmo, a seu inato expressionismo.
Neste quadro, Van Gogh cumpria outra de suas mais cobiçadas características que é a rapidez. Aplicava a tinta em grossas camadas, diretamente sobre a tela, sem desenho prévio.
O seu relacionamento com Gauguin tomou rumo extremo. Em dezembro de 1888, durante uma discussão, Van Gogh agrediu fisicamente Gauguin com uma lâmina de barbear e depois, cortou o lóbulo da sua própria orelha, que entregou como presente a uma prostituta amiga.

“Autorretrato com orelha enfaixada”, 1889.


“Prefiro pintar olhos de pessoas a pintar catedrais”, ele escreveu, “pois tem alguma coisa nos olhos que não tem na catedral.”


Num primeiro momento, Gauguin foi acusado de assassinar seu amigo que na verdade, encontrava-se inconsciente. A partir daí, começou uma nova fase na vida de Van Gogh, a depressão, a melancolia, as crises, os momentos de êxtase resultaram em sucessivas internações em hospitais psiquiátricos.
Como se desejasse registrar a visão externa e interna de sua casa em Arles, Van Gogh pintou o seu quarto.
No inicio de maio de 1889, Van Gogh enviou a obra para Paris a fim de que seu irmão a emoldurasse. O quadro, porém, havia sofrido grave deterioração e retornou a Arles para que, antes de restaurá-lo, o artista o copiasse. Ele fez uma visão bastante livre e, animado pelo resultado, fez outra. Esta última imaginou presentear sua mãe e sua irmã Wilhelmina.

“O quarto de Van Gogh em Arles”, 1889.


“Hoje voltei a me dedicar à tarefa. Meus olhos ainda estão cansados, mas enfim, tive uma ideia nova e este é o croqui. Desta vez, é simplesmente meu dormitório; só que a cor deve predominar aqui, transmitindo, com sua simplificação, um estilo maior às coisas para sugerir o repouso ou o sono. A visão do quadro deve descansar a cabeça ou, mais além, a imaginação. As paredes são de um violeta pálido. O chão é de quadros vermelhos. A madeira da cama e das cadeiras, são de um amarelo de manteiga fresca; o lençol e os travesseiros, limão verde muito claro. A colcha é vermelha escarlate. A janela, verde. O lavatório, alaranjado; a cuba, azul. As portas são lilases. E isso é tudo – nada mais neste quarto com os postigos fechados. O quadrado dos móveis deve insistir na expressão de repouso inquebrantável. Os retratos na parede, um espelho, uma garrafa e algumas roupas. A moldura como não há branco no quadro, será branca”, explica Van Gogh.

Surpreende a presença de duas cadeiras em um aposento individual. Parece que, com os dois assentos, Van Gogh pretendeu transmitir a ideia de companhia. Além disso, o pintor utilizou a cadeira do fundo para reforçar a perspectiva do lado esquerdo em combinação com a que surge em primeiro plano. No entanto, rompe a harmonia da perspectiva da mesa em relação ao ponto de vista.
Juntamente com o restante do mobiliário, a mesa também transgride as leis da perspectiva. Sobre o móvel descansam uma garrafa, um copo, uma bacia com um jarro em seu interior, um prato com sabão e um par de frascos e de escovas. O espelho também não mantém a perspectiva.
O chão é significativamente diferente do piso das interpretações anteriores tanto em textura como em cor. Em variações de cor vermelha e verde, as pinceladas parecem simular faixas de madeira mais estreitas, de aparência mais compacta do que nas versões precedentes.
Em 8 de maio de 1889, Van Gogh internou-se voluntariamente no manicômio Saint-Paul-de-Mausole, em Saint-Rémy-de-Provence e lá permaneceu por um ano.
Em Saint-Rémy, Van Gogh pintou, praticamente em sequência, os quatros últimos auto-retratos, cumprindo o desejo confesso que, cem anos depois, as pessoas os vissem como aparições.”
Nos autorretratos, a presença do artista é tão vivida que dá a impressão de que seu espírito atormentado assombra a tela.
No primeiro autorretrato, Van Gogh mostra-se com a paleta na mão e vestindo a roupa que usava para pintar - foi á única vez que se captou assim. Acabava de superar um de seus surtos e estava magro e pálido como um fantasma.

“Autorretrato”, 1890.


O quadro é azul-violeta escuro; o rosto esbranquiçado e a barba amarela e verde lhe conferem um aspecto doentio.
Mais tarde, pintou outros dois auto-retratos – o último inacabado – em verdes, azuis e amarelos, com os olhos mais profundos do que em qualquer outra tela.
O “Autorretrato” reproduzido a seguir, o segundo da série, foi produzido em setembro de 1890.

“Autorretrato”, 1889.


Este quadro é considerado uma continuação do primeiro, em que mostra seu débil estado de saúde. Van Gogh representou-se com jaqueta e colete, ocasião na qual se apresenta com maior elegância depois de Paris.
A intenção era mostrar-se recuperado a seu irmão. Apesar de sua fé no pronto restabelecimento e na terapia da pintura, às vezes era vítima de surtos e chegava a comer as tintas.
Ao descrever este autorretrato a sua irmã Wilhelmina, Van Gogh disse que era de “um formoso azul do Midi”. Em meio a um cenário turbulento, que parece deslizar pelo traje, o vermelho da barba e o verde dos cabelos recortam e, ao mesmo tempo, destacam a cabeça.

“Tanto na vida como na pintura, posso muito bem ficar sem Deus; mas não posso, sem sofrer, ficar sem algo que é maior do que eu, que significa a minha vida inteira: a força de criar”.


Van Gogh descreveu as precárias condições do manicômio no que se refere a instalações e alimentação, mas falava com grande carinho sobre os internados que, conforme assegura em sua correspondência demonstrava mais educação e capacidade do que os habitantes de Arles.
Durante sua internação, Van Gogh no jardim do hospital, retratou diversas cenas do seu novo cotidiano e também do mundo exterior, quando recebia autorização para sair sob vigilância.

“Lírios”, 1889.


Em seguida, com uma “fúria muda”, trabalhou três noites seguidas porque, como ele escreveu, “a noite é mais viva e mais ricamente colorida que o dia” e acrescentou: “me pergunto quando terminarei minha noite estrelada”.

 “A noite estrelada”, 1889.


O quadro transmite um movimento intempestivo através de pinceladas curvas; as estrelas e a lua parecem explodir de energia.

“O que faço é quase por acaso”, ele escreveu, “mas com verdadeira intenção e propósito.”

Eu confesso não saber a razão, mas olhar as estrelas sempre me faz sonhar.” Talvez por isso, em seus últimos anos, Van Gogh deixou-se aproximar pelo tema da noite.
Fazia quase um mês que estava internado quando criou “A noite estrelada”. A partir daí, suas telas começaram apresentar um novo caráter, consequência lógica de seu estado mental.
Apesar de toda a força dinâmica da “A Noite Estrelada”, a composição é cuidadosamente equilibrada. Era como se o artista já não desejasse descrever a cena, mas apenas manifestar um estado de ânimo. No extremo oposto à lua brilhante, surge a monumental e escura silhueta dos flamejantes ciprestes. Verdes, vermelhos e manchados de amarelo, os ciprestes contrapõem-se à luminosidade do céu e proporcionam, salvo a sinuosidade de suas linhas, um senso de controle, de eternidade.
O impulso ascendente do cipreste faz eco à torre vertical, ambos cortando as linhas curvas laterais dos montes e do céu.
Nos dois lados, as formas verticais funcionam como freios, contra forças para impedir que o olho seja levado para fora do quadro.
O cipreste escuro compensa também a lua brilhante no canto oposto, para obter um efeito equilibrado. As formas dos objetos determinam o ritmo do fluxo das pinceladas, de modo que o efeito total é mais de unidade expressiva que de um caos.
As estrelas definem-se por seu brilho. O pintor submergiu as estrelas num redemoinho de intensa luz, obtido com pinceladas amarelas e brancas. Assim, o pintor gerou a sensação de que as estrelas oscilam num firmamento tingido de azuis.
Com a forma de um desproporcional e imperfeito quarto minguante de tom alaranjado, a lua surge fora de centro, em meio a um intenso resplendor, que se estende pela tela como ondas. É um artifício que transmite uma sensação de liquefação à tela.
O povoado pequeno, intimidado e próximo do espectador, ocupa p terço inferior do quadro. Poucas pinceladas amarelas indicam que há luzes acesas no interior das casas, humilde resposta à apoteose de luz do céu estrelado. Só o pináculo da torre da igreja surge como um desafiante e, ao mesmo tempo, frágil vínculo entre o céu e o homem.
As espirais de luz como se fosse uma onda gigantesca ou uma terrível língua de fogo, cria uma sensação de vertigem sufocante e ameaçadora. Por meio dessas espirais repletas de traços luminosos, Van Gogh constrói uma representação estilizada da Via Láctea.
O vale de Saint-Rémy-de-Provence é reproduzido com uma gama de azuis combinados, ao mesmo tempo, com tons escuros e reflexos.
À direita, sob o luar, alguns reflexos dourados indicam a presença de um milharal.
Van Gogh imaginava a pintura como a música executada com emoção de uma prece. As notas musicais seriam as cores.

Tenho a terrível necessidade de uma religião. Então, saio noite afora para pintar as estrelas.”

Suas angústias religiosas estavam de volta, o que despertava sua tristeza.
Em 1890, Theo enviou-lhe um artigo do crítico Albert Aurier sobre a sua obra:

Trata-se do universal, louco e deslumbrante fulgor das coisas; trata-se da matéria, da natureza inteira retorcida freneticamente, exaltada ao extremo, elevada ao ponto mais alto da exacerbação; trata-se da forma que se converte em pesadelo, da cor que se converte em incêndio; da vida, febre alta...”

Estas palavras o animaram e outro fato veio somar sua empolgação: a tela “A vinha vermelha” exposta no Salão “Les XX”, de Bruxelas, foi adquirida. Parecia que o sucesso estava chegando.

“A vinha vermelha”, 1890.


Nessa época, inspirado pela natureza, pintou ciprestes; vicejantes árvores frutíferas; flores e campos de trigo, e objetos de seu cotidiano, carregados de sua cor predileta, o amarelo.
No entanto, pressentindo sua morte, quis retornar ao norte.
Pissarro sugeriu Auvers-sur-Oise, perto de Paris, onde vivia o Dr. Paul Gachet, entusiasta da arte que poderia acompanhar o tratamento de sua saúde.
Em Auvers-sur-Oise estreitou amizade com o Dr. Gachet, retratou os arredores do povoado e criou sua obra prima: “A igreja de Auvers”.

“A igreja de Auvers”, 1890.


Em uma carta a sua irmã Wilhelmina, encontra-se o seguinte comentário do pintor:

Fiz um grande quadro com a igreja do povoado, no qual a construção surge violácea contra um céu azul profundo de cobalto puro; os vitrai carregam manchas de azul-marinho. Em primeiro plano, um pouco de verde florido e de areia rosa. É muito semelhante aos estudos da torre do cemitério que fiz em Nuenen, só que agora a cor é mais viva, mais sintuosa.”

Em seus últimos setenta dias, Van Gogh embora sob tensão constante, estava tecnicamente, no auge das forças, em pleno controle de suas formas simplificadas, das zonas de cor forte sem sombras e do trabalho expressivo de pincel.

Cada vez que olho seus quadros, vejo alguma coisa nova”, disse seu médico, Dr.Gachet e acrescenta:

Ele é mais que um grande pintor, é um filósofo.”

“O Dr. Gachet”, 1890.


Quando Van Gogh conheceu o Dr. Gachet, por indicação de Pissarro, identificaram-se, principalmente por questões artísticas.
O Dr. Gachet era um médico renomado nos meios culturais de Paris: pintava, comprava obras dos jovens artistas quando ninguém o fazia, e havia exposto sob o pseudônimo no Salon des Indépendants.
Entre as obras particulares, o médico possuía um nu de Guillaumin ao qual Van Gogh mostrava grande admiração. O artista, então, sugeriu ao médico que emoldurasse a obra para realçá-la. Como o médico não atendeu a seu pedido, Van Gogh se aborreceu, o que levou à ruptura das relações entre eles.

“Creio que não devo mais contar com o Dr. Gachet. Em primeiro lugar, ele está mais doente do que eu ou, pelo menos, tanto como eu, de modo que não há mais do que falar. Quando um cego conduz ou cego, os dois não caem no buraco?”, escreveu a seu irmão.

Na época, pintou os trigais:

São vastas extensões de trigo sob céus tempestuosos e não tive dificuldades para expressar a tristeza e a extrema solidão.”

“Campo de trigo com corvos”, 1890.


Este quadro está cercado de um lúgubre misticismo, já que foi interpretado como presságio de sua morte. O pintor sentia-se pressionado pela tristeza e pela solidão extremas. Com toda precisão, Van Gogh modelou a angústia que o acometia nesses campos solitários repletos de corvos, com caminhos que não levam a lugar algum, céus sombrios e mares de trigo que parecem uma onda que não se pode atravessar. Enfim, a impotência diante da imensidão.
Pinta a encruzilhada de três trilhas, uma delas interrompida, por onde passavam as sementeiras de trigo dourado, símbolos da vida, no limiar da morte, como ele próprio. Evocam o tema dos três escrínios (Freud, 1913), que Freud propõe que seja tratado como fora um sonho. O número três representaria as mulheres com as quais o homem manteria inevitáveis relações: a que lhe dá a Luz, a que é sua companheira e a que o destrói, a Terra Mãe. A terceira é Átropos, a morte. Freud refere-se aos corvos como pássaros espíritos.
Em junho de 1890, uma carta de Theo comunicando-lhe sobre as dificuldades financeiras, rompeu seus projetos. O artista receando ser um peso a mais, terminou sua última carta com as palavras: “Para quê?”

Gostaria de ir para casa agora” foram as últimas palavras que dirigiu ao irmão.

Em seguida, foi para o campo com uma pistola e atirou no seu estômago. Morreu em 29 de julho de 1890.
Consciente por breves momentos antes de morrer, exprimiu seu último pensamento:

Quem diria que a vida pode ser tão triste?”

Era um homem honesto e um grande artista. Tinha apenas dois objetivos: a humanidade e a arte. É a arte que vai garantir sua sobrevivência”, afirmou dr.Gachet.

Seis meses depois da morte de Van Gogh, Theo morreu.

CONSIDERAÇÕES FINAIS:


Van Gogh teve uma vida infeliz: não conseguiu reconhecimento de sua obra; produziu mais de oitocentas telas e outros tantos desenhos e vendeu apenas um quadro em toda a sua vida; foi rejeitado pelas mulheres que amou e quando, uma holandesa finalmente o aceitou, o casamento foi proibido pelos pais delas, terminando no suicídio da mesma.

Tímido, excêntrico, solitário, depressivo, hiperativo, atirava-se à pintura com um frenesi terapêutico, pintando o tempo todo com uma rapidez alucinante. Passava noite adentro, com tocos de velas presos na aba do chapéu e esquecendo-se até de se alimentar.
Sua autobiografia está contida nas muitas cartas que escreveu e que representam um documento de registro de sua vida e, em suas obras pictóricas. Essas duas expressões artísticas estão totalmente entrelaçadas e revelam a fonte para a compreensão da vida conflituosa do artista.
Afirmava que a pintura era “o pára-raios da minha sanidade”.
A sua hipersensibilidade em relação ao mundo que o cercava aplicava-se também a seu trabalho: aos materiais de sua arte, às tintas e pincéis, às penas de junco, aos elementos pictóricos que tornou caracteristicamente seus, cor e formas unidas em sua aplicação linear de densas camadas de tinta.
Conhecia a cor mais profundamente e dava-lhe um valor mais elevado do que qualquer outro pintor antes dele; e profetizou o grande papel que ela desempenharia na arte do futuro, mas tudo o que fez tinha sua justificação não em conhecimentos abstratos, mas em sua própria e sensível experiência.
Apesar de ter adotado a pincelada interrompida e as fortes cores complementares do Impressionismo, a arte de Van Gogh sempre foi original.
Repudiava a técnica acadêmica e afirmava que queria “pintar incorretamente, para minha falsidade se tornar mais verdadeira que a verdade literal”.

TEMA: Autorretrato, flores, paisagens e naturezas-mortas.
ASSINATURA: Pinceladas agitadas, em espiral.
TIPO: Apaixonado e vibrante
PREOCUPAÇÃO: Reação emocional ao tema através da cor, pincelada
MARCAS: “Impasto” grosso em pinceladas cortadas ou faixas onduladas; formas simples em cores puras, brilhantes; ritmos em caracol sugerindo movimento.